A TRAGÉDIA DE UM AFOGAMENTO DE FAMÍLIA

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Tinha acabado o almoço, bastante interessante, porque debatera com a Sílvia alguns dos aspectos da teoria da evolução , de Darwin. Também tinham vindo à baila alguns dos filmes do Kubrik, através das mais amplas associações de ideias.

Depois de beberricar uns golinhos de nada do café preparado pela consorte, sentira que a refeição só acabaria bem com uma bebida forte, convindo mesmo que, no caso de ser muito forte , daí não viria grande mal ao pobre mundo.

Um varejo pela despensa permitiu-me lobrigar , a um canto, uma garrafinha insignificante, com o ar que ostentam certas pessoas, que pedem todos os dias licença para andarem por cá. O vasilhame, de vidro branco, mostrava dois rótulos amarelos, um de cada lado. No da frente podia ler-se : "Lenda da Beira - produtos com história. Aguardente de medronho. Product of Portugal. fruit of arbutus spirit. 45 % vol. 500 ml." A meio, era visível uma imagem , em fundo verde, com um medronho inteiro e duas metades, estando uma delas decepada pelo meio, de maneira a mostrar a sua polpa, também amarela. Do outro lado, oposto ao rótulo principal, constava o seguinte relambório : "AGUARDENTE DE MEDRONHO. A pureza e a genuinidade desta aguardente são provenientes de frutos naturais maduros, de novas plantações organizadas com plantas seleccionadas nas serras de Pampilhosa da Serra - Beira Baixa. A selecção dos frutos maduros e o rigoroso controlo de todo o processo torna esta aguardente de qualidade superior, deixando na boca o aroma do fruto" .

Achei aquilo bem, não resistindo ao desafio de continuar a ler o resto, desta vez na língua da terra "brexitiana" da saudosa Rainha Vitória. Passo a citar : " The purity and the genuineness of the firewater are from the natural mature fruits of new plantations organized with select plants in Pampilhosa da Serra mountains in Beira Baixa " ( não escreveram Board Low ou Low Board nem eu sei bem porquê) . Mas dizia mais : " The mature fruits selections and the rigorous control of all the process turns this firewater of higher quality, letting the flavour of the fruits in your mouth".

Já agora, ficaria na minha boca ( "mouth" ) com o remorso de antipatriota ( "antipatriotic one ?" ) se não transcrevesse, sem nada omitir, o resto do rótulo, coisa que passo a fazer : "produzido e engarrafado por LENDA DA BEIRA. Sede : Signo Samo 3320-I77 Pampilhosa da Serra. Armazém : Zona industrial alto das aldeias, lote II 3320-I50 Pampilhosa da Serra." . Mas o dilúvio informativo não se ficava por aqui. O produtor da Pampilhosa, ainda que da Serra, revelava o mais progressivo acesso de modernidade, acrescentando : "www.lendadabeira.pt. lendadabeira(arroba)gmail.com" . Este exemplar produtor declarava que a garrafa, depois de vazia, deveria ser abandonada no Ecoponto Verde ( boa escolha) e, deveras preocupado com a sanidade do meu fígado, ainda acrescentava, mui paternal : "beba com moderação drink in moderation" . Também fiquei ciente que o lote era o 6 / 20I7 e que do código de barras constavam os seguintes números : 5 600733 782027.

Durante o almoço, a minha argumentação com a Sílvia girara em torno de magna questão de saber como se operara a evolução da mónade para o multicelular , e de como teria sido a mutação dos peixes para os batráquios, destes para os répteis , dos répteis para as aves e, finalmente , das aves para os mamíferos.

Por este tempo já eu me tinha servido generosamente de um bom quinhão de "waterfire" , nadando em balão de boca larga, agitado carinhosamente por mim, com o fito de lhe desprender do bojo todo o "flavour" que aí se pudesse conter.

Estava eu no meio de um argumento quando sobre mim - e muito mais sobre o cálice - volitou um minúsculo mosquito, inebriado pelos eflúvios alcoólicos em presença.

Reconheci imediatamente o referido mosquito : era um meu tetravô , que tinha sido o tronco originário de uma robusta família, bastante dada às práticas da beberronice. Fiz-me desentendido e mudei o lugar do cálice. Quem não deu mostras de desistir foi o meu mosquito penta-tetra-avô. Continuou a sobrevoar, todo arteiro, o lugar exacto do "flavour". Por não querer que acontecesse uma desgraça, continuei a conversar com a Sílvia, mas mantendo desta vez a minha mão no orifício do cálice, de modo a tapá-lo completamente.

A desgraça aconteceu quando, entusiasmado com a vivacidade dos argumentos mútuos, eu retirei a protectora mão do bocal perversor.

Só me deu tempo de ver um minúsculo ponto negro a debater-se no mar fatal do "arbutus spirit". Fiquei tão pálido que a Sílvia me inquiriu : - "Mas que tens tu, que estás tão alterado ?" .

Tive de confessar-lhe a verdade toda : - "Acabo de ser o responsável pela afogamento trágico de um remoto antepassado numa bebida destilada na Pampilhosa da Serra" .

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Amadeu Homem