AS BARBEARIAS DA ALTA DE COIMBRA: ESCOLAS DE GUITARRA E VIOLA

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Por volta do ano de 1900, a música tradicional de Coimbra entra nas barbearias instaladas no Território Salatina, pelas mãos dos mestres António Rodrigues da Silva e José Lopes da Fonseca (“Zé Trego”, como ficou conhecido, ao que parece pela sua dificuldade em pronunciar os erres).

A barbearia de António Rodrigues da Silva ficava situada no Marco da Feira (ou Rua do Cano da Feira), que subia em curva, no topo sul do Largo da Feira, desde o Colégio dos Loios (Governo Civil) até ao Largo do Castelo. Ficou conhecida por “O Elétrico”, dada a disposição das suas três cadeiras giratórias, alinhadas num espaço estreito e comprido.

A barbearia de José Trego ficava situada no Largo de S. João (hoje Largo Dr. José Rodrigues), fronteira à entrada para o Museu Machado de Castro.

ANTÓNIO RODRIGUES DA SILVA nasceu em Coimbra, em 22 de fevereiro de 1880, ao cima da Rua dos Militares, onde faleceu em 22 de outubro de 1918, vitimado pela pneumónica. Iniciou-se na música como violinista e, posteriormente, dedicou-se à guitarra. Orientador musical, foi pai dos barbeiros e músicos Flávio Rodrigues da Silva e Fernando Rodrigues da Silva e tio de Manuel Gomes da Costa (1900-1972), pintor da construção civil e guitarrista, e de Henrique Gomes da Costa (1903-1927), guitarrista.  

JOSÉ LOPES DA FONSECA («José Trego») nasceu em 8 de março de 1883 e faleceu em 22 de abril de 1976. Barbeiro, funcionário da Escola do Magistério Primário (no Largo da Sé Velha), ator amador, violista, serenateiro. Morava na Rua do Salvador, onde nasceram os seus filhos José de Sousa Lopes (1913-1987), funcionário bancário, violista e violonista; Rui Sousa Lopes (1917-1980), eletricista mecânico, cantor (tenor); e Maria José Fonseca Lopes Quintas (1929-2019), atriz amadora e cantadeira. Afonso Duarte (1884 – 1958), Artur Paredes (1899 – 1980), José Régio (1901 - 1969) e muitas outras figuras marcantes da cultura, do canto e da música de Coimbra, frequentaram a sua barbearia. Ensinou muitos, estudantes e não estudantes da Universidade, a tocar no violão de cordas de aço.

Em abril de 1948 foram demolidos os prédios do quarteirão situado entre a Rua / Largo de S. João e o Largo da Feira, entre eles o da barbearia de José Trego.

FLÁVIO RODRIGUES DA SILVA nasceu na Rua dos Militares em 29 de outubro de 1902. Herdou de seu pai a barbearia “O Elétrico”, no Marco da Feira, que se tornou uma verdadeira escola de guitarra e viola para sucessivas gerações de estudantes. Compositor (autor das guitarradas “Variações em Ré menor” n.ºs 1, 2 e 3, “Variações em Dó maior”, “Valsa em Sol maior”, “Valsa em Lá menor” e “Variações em Mi menor”; da marcha “Marcha dos pirilampos”; da serenata “É tão lindo o teu olhar”; e autor de arranjos e adaptações das guitarradas “Variações sobre o fado em Dó”, de Ricardo Branco Borges de Sousa, e “Marcha da Rainha Santa”, de César Magliano; da serenata “O beijo”, de Cipriano Pio; e da valsa-serenata “Não ames”, de José das Neves Elyseu), guitarrista e ator amador, já em 1919, aos 17 anos, atuou no Casino Estoril, com Augusto da Silva Louro (1902-1927), funcionário dos Correios e violista, no sarau comemorativo do fim da I Guerra Mundial. No período de 1923 a 1927, integrou, com Augusto Louro e José Maria dos Santos (1906-1976), jornalista, funcionário da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e violista, o “Trio Coimbra”, com recitais dados em Coimbra, Lisboa, Figueira da Foz e Paris. Em maio de 1927, gravou em Paris, com Augusto Louro, para a Odeon, num disco 78 rpm, as suas “Variações em Ré menor”, n.ºs 1 e 3, e a marcha “Canção Ideal”, de César Magliano.

Em abril de 1949 concluiu-se a destruição do quarteirão compreendido entre o Largo do Castelo, o Marco da Feira e a Rua Larga, incluindo a barbearia de Flávio Rodrigues da Silva.

Arrasada a Rua dos Militares, onde herdara a casa de família, Flávio viu-se deportado para o Bairro das Sete Fontes, em Celas. Afastado da sua clientela, como barbeiro e mestre de guitarra e viola, faleceu em 23 de agosto de 1950, aos 47 anos.

FERNANDO RODRIGUES DA SILVA nasceu em Coimbra, em 18 de janeiro de 1915. Falecido o seu pai, António Rodrigues da Silva, em 1918, foi com mestre José Trego que aprendeu violão, tornando-se acompanhante de seu irmão Flávio, guitarrista, treze anos mais velho que ele. Barbeiro de profissão, tal como o pai e o irmão, abriu a sua oficina na então sede da Associação Académica de Coimbra, no Colégio de S. Paulo I Eremita (ou Colégio dos Paulistas), aí dando aulas de instrumentos de corda.

Demolido esse Colégio em dezembro de 1949, Fernando, que, depois de casar, passara a viver na Rua da Matemática, pôde prosseguir a sua atividade de barbeiro e mestre de viola e guitarra na nova sede da AAC no Palácio dos Grilos, como se recorda no texto de Carlos Santarém Andrade. Essa sede foi policialmente encerrada em maio de 1962 na sequência da crise académica desse ano.

Em 1963, a sede da AAC passou para as atuais instalações, junto à Praça da República, mas os novos dirigentes entenderam que nela não havia lugar para barbearia e aulas de guitarra e viola.

Fernando Rodrigues da Silva viu-se obrigado a prosseguir a sua atividade como barbeiro nas casas dos clientes e num espaço minúsculo junto ao Instituto de Medicina Legal, anexo à Faculdade de Medicina, e como mestre de viola na sua casa, à Rua da Matemática, n.º 16, 2.º andar, onde faleceu a 2 de dezembro de 1964, aos 49 anos de idade.

Desta recolha resultam, além do mais, duas evidências: o proveitoso entrosamento cultural das duas comunidades da Alta (a estudantil e a salatina) e o reconhecimento de que a destruição da Alta não foi apenas um crime contra o património histórico e artístico, mas a violenta liquidação de uma secular vivência comunitária e familiar, com a forçada separação de famílias: Flávio, por ser o filho mais velho e ter o azar de a barbearia e a casa que herdou do pai se situarem na zona a demolir, foi desterrado para Celas, onde, longe da sua clientela, veio a falecer; Fernando, o filho mais novo, que passara a morar na Rua da Matemática, e, como "barbeiro da AAC", transitara da sede da Rua Larga para a do Palácio dos Grilos, ainda conseguiu sobreviver no seu bairro natal.

Uma última nota: como se vê das imagens dos prédios onde se situavam as barbearias, tratava-se de edifícios de boa qualidade (a maioria melhores que os da zona da poupada zona das Ruas do Salvador e da Matemática), e não em adiantado estado de degradação, contra o que por vezes se diz para justificar a destruição.

Fontes:

“Músicos do Território Salatina 1880-1947”, Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra, 2012.

António Manuel Nunes / José dos Santos Paulo, “Flávio Rodrigues da Silva – Fragmentos para uma guitarra”, Coimbra, MinervaCoimbra, 2002.  

 

Mário Torres