COIMBRA, CAPITAL MUNDIAL DO PATRIMÓNIO ARRUINADO:

DA IGREJA DE S. CRISTÓVÃO AO TEATRO DE SOUSA BASTOS

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«No local onde se encontra o edifício do Teatro Sousa Bastos (...) ergueu-se até ao século XIX - embora já desativada e arruÍnada - a Igreja de São Cristóvão, cuja memória apenas perdura na ruela estreita que ainda mantém a toponímia. (...)

Em meados do século XIX, a arruinada Igreja foi solicitada pela Associação Recreativa Conimbricenses com a finalidade de para aí transitar o Teatro da Sé Velha (...).

A carta régia de 23 de março de 1857 concedeu o edifício enquanto o teatro se mantivesse em funcionamento; contudo, a Associação optou pela completa demolição da vetusta construção, ainda nesse mesmo ano. Nesta altura, foi posto a descoberto o primitivo templo de São Cristóvão, possivelmente pré-românico. (...).

No outono do ano seguinte estavam as obras concluídas e, em 18 de dezembro de 1861, o Teatro de São Cristóvão passava oficialmente a denominar-se D. Luís I, por decreto régio. (...)

Em 1910, por iniciativa do empresário Manuel Francisco Esteves ao Teatro D. Luís sucederá o Teatro de Sousa Bastos. A escolha do nome deu-se pelo facto de Manuel Francisco Esteves ser sobrinho do dramaturgo e querer homenagear a memória do tio, entretanto falecido. A inauguração do Teatro Sousa Bastos, retardada até 1914 - dados os requintes da construção exterior e interior em estilo Arte Nova - deu-se a 15 de junho de 1914 com a Companhia do Teatro Avenida de Lisboa, em que figurava a viúva de Sousa Bastos, Palmira Bastos.(...)

Hoje é um edifício arruinado e abandonado, desprezado, (...)»

in Teatro Sousa Bastos - As primeiras décadas de história, Lígia Gambini, 1999.

 

AUGUSTO FILIPE SIMÔES,

 

"IGREJA DE S. CRISTÓVÃO

 

Há dez anos que transformaram num teatro a velha igreja de S. Cristóvão de Coimbra. De sua veneranda fábrica não ficou patente um só vestígio. Foi completo o sacrifício. À voz imperiosa das necessidades da moderna civilização, um monumento perfeito da arquitetura cristã cedeu o lugar a um edifício acanhado e defeituoso de alvernaria contemporânea. Aquelas paredes esmaltadas de hera e de musgo, aquelas pedras tisnadas pelos sóis de muitos séculos, aquelas formosas esculturas, em que a firmeza do cinzel exprimia a força da nação pareceram velharias inúteis. As recordações gloriosas do reinado de D. Afonso Henriques deviam sumir-se para deixar em todo o esplendor as pinturas, a cola e os ouropéis do Teatro de D. Luís.

Todavia, o desamor das artes, o desprezo das tradições históricas, a estúpida indiferença para com as memórias do passado não chegaram ainda a tal ponto que nos tornasse impossível dar hoje, por meio do desenho, uma ideia clara e exata do que foi aquela igreja. O sr. conde da Graciosa, coletor diligente de curiosidades artísticas e naturais, recolheu com louvável empenho em suas propriedades do Luso e da Graciosa alguns capitéis e outros ornatos que estariam provavelmente destinados para avolumar as paredes do teatro. O sr. Luís Augusto Pereira Bastos, à primeira notícia da demolição, correu pressuroso a desenhar o frontispício da igreja antes que a pusesse por terra o camartelo destruidor. O sr. António Francisco Barata, delicado cultor da poesia do passado, guardou com veneração a planta do edifício. Ao amoroso cuidado destes três homens e ainda ao santo zelo com que o sr. Joaquim de Mariz Júnior, fervoroso devoto das coisas da nossa terra, foi em piedosa peregrinação a quatro léguas de Coimbra desenhar os capitéis, devemos a estampa 2.ª, sem a qual menos completo ficaria este trabalho.

Nos princípios do século XII vieram de França a Coimbra uns religiosos, cujo prelado ou cabeça se chamava João, por alcunha Peculiar ou Ovelheiro, os quais obtiveram licença do Conde D. Henrique para fundar um mosteiro, onde vivessem em comunidade, segundo a regra de S. Agostinho (1).

Este D. João Peculiar é o mesmo que depois, sendo arcebispo de Braga, teve grandes desavenças com os bispos de Coimbra D. Bernardo e D. João Anaia, chegando a cometer roubos e sacrilégios, em sua própria casa e igreja. O mais notável desses crimes de que o acusaram foi o desacato perpetrado em S. João de Almedina, onde rasgou os ornamentos do altar, quebrou cruzes e lançou por terra as sagradas formas, esmigalhando-as com os pés (2). Daqui se vê que toda a sua humildade e exemplares costumes e serviços que prestou, enquanto religioso, não foram mais que um fingimento, um meio de elevar-se para largar depois o freio aos maus instintos que antecedentemente dominara. Até nos tempos da sua maior austeridade e pureza, aparecem destas manchas indeléveis nas ordens monásticas.

Os mais antigos documentos que se conhecem, além da carta citada em nota, respetivos à igreja de S. Cristóvão, são uma inscrição em que se memora a morte de D. João Pater, presbítero, em 21 de dezembro do ano de 1169 (3), uma doação de certas casas que lhe foi feita por Martim Anaia e sua mulher Elvira no mês de fevereiro da era de 1211 (ano de 1173) (4) e uma inscrição sepulcral achada na base do cunhal da frontaria, ao lado esquerdo, quando em 1858 se principiou a obra do teatro. Nesta inscrição decifrou o sr. Aires de Campos algumas letras avulsas e a data : E : M : CC : XVIII : correspondente ao ano de 1180.

O autor de Coimbra Gloriosa (5) descreveu a igreja de S. Cristóvão nos termos seguintes:

«Tem a capela-mor ao nascente, porta principal ao poente, travessa ao sul. Tem o templo 60 palmos de alto, 115 de comprimento e 58 de largo, obra toscana e de três naves, fabricada de pedra e cal e de abóbada, a qual se segura sobre três colunas de cada parte e por todas são seis. Tem o coro catorze cadeiras com suficiente claridade provinda de oito frestas, entre elas cinco que foram abertas no ano de 1754… também lhe foi posta no mesmo ano uma cruz de pedra no teto da igreja ficando arvorada para o poente. Neste tempo foram extraídos do frontispício várias carrancas de pedra.»

Segundo uma comunicação do sr. prior M. da C. Pereira Coutinho, bem conhecido por seus estudos arqueológicos, as colunas de S. Cristóvão eram de um só corpo o coroadas por capitéis modelados pelos da Sé Velha. A cada uma das três naves correspondia um altar em forma de semi-círculo que parecia da construção primitiva. Finalmente as paredes eram guarnecidas de ameias como as daquele templo.

Quando se fez a demolição apareceu pela parte anterior, junto da porta, um subterrâneo com forma análoga à da igreja, porém em ponto mais pequeno. Nas paredes deste subterrâneo viam-se vestígios de pinturas a fresco. Dois grandes pedestais de alvenaria, quadrangulares e não afeiçoados serviam de apoio às duas colunas do templo que a esta parte correspondiam. Na planta da estampa 2.ª vê-se indicada com pontos esta construção inferior. Pelo lugar que ocupava, por sua forma e pintura, bem se conhece ter sido uma cripta (6). Convém saber que na Sé de Lisboa apareceu também um subterrâneo em lugar correspondente junto da porta principal.

No capítulo seguinte mostraremos como as semelhanças da arquitetura de S. Cristóvão e da Sé Velha autorizam a supor que foram obra do mesmo arquiteto, ou pelo menos de artistas contemporâneos e da mesma escola.

AUGUSTO FILIPE SIMÕES.

«Relíquias da arquitetura romano-bizantina em Portugal e particularmente na cidade de Coimbra», Lisboa, Tipografia Portuguesa, 1870, págs. 14-15.

(1) Prova-se com a carta do bispo D. Gonçalo e com a Vida de D. Telo. A carta vem transcrita em Coimbra Gloriosa, manuscrito da Biblioteca Nacional, e nas Notícias Eclesiásticas do Bispado de Coimbra, de Francisco Leitão Ferreira, manuscrito da Biblioteca Pública de Évora. Diz assim:

«Gondiçalvus Episcopus Conimbrigens vobis devoto Abbati Joannis et coeteris Heremitis qui vobis adherunt

Lê-se na Vida de D. Telo:

Portugaliae Monumenta Historica, Scriptum, vol. 1.º, pág. 76.

(2) Notícia Histórica do Mosteiro da Vacariça, parte 2.ª, doc. n.º 14.

(3) Antiquário Conimbricense, n.º 8.

(4) J. P. Ribeiro, Observações de Diplomática Portuguesa.

(5) Coimbra Gloriosa, tomo 1.º, cap. 4.º, parte 1.ª, § 11.  

(6) ?, 

Mário Torres