Memórias do D. João III - Ciúmes

 

Corria um burburinho à saída do Liceu. Os alunos agitavam-se num tumulto da braços, pastas e vozes. Corriam de um lado para o outro, os sorrisos estampados nos rostos imberbes, contrastando com um chispar inusitado nos olhares. Atravessaram aos magotes a avenida e começaram a descer a escadaria. Empurravam-se ou puxavam pelas roupas uns dos outros, pretendendo acercar-se de dois dos alunos mais velhos, que discutiam acaloradamente.

O Franca e o Magalhães eram alunos do 7.º ano. Eram altos, fortes, desenvoltos. Desciam a escadaria em passo acelerado, enquanto trocavam palavras ásperas, que nós, os novatos, não conseguíamos decifrar à distância. A chusma rodeava-os, corria, saltitava, como abutres sobre a sua presa. Falava-se numa luta entre os dois que iria acontecer lá mais para baixo. Por motivos de ciúmes, dizia-se. Um duelo, comentavam alguns com evidente e mórbido exagero.

Iniciávamos agora a descida do último lanço de escadas que dava para a papelaria do senhor Brandão, os degraus vencidos dois a dois pelos mais excitados. A pequena multidão curiosa e sedenta de emoções atropelava-se em direcção à Rua do Instituto Maternal. Afinal, era ali o local combinado. A ruazita encheu-se rapidamente. O Franca e o Magalhães atiraram os livros para o passeio num repelão e livraram-se dos casacos. As caras dos mirones ficaram arrepiadas, os olhos esgazeados, os corações aos tombos.

A luta começou, num arremesso. Voaram braços vigorosos, pontapés violentos. As bocas retorcidas salivando ódio e raiva. Punhos que embatiam nos rostos produzindo sonoridades repetidas, secas e ocas. A melena do Franca varrida por uma punhada do Magalhães, que de imediato se agachou em consequência de um pontapé desferido sem misericórdia pelo outro. Não se ouvia um grito. Não se ouvia uma imprecação. Não se ouvia uma ofensa. Apenas o raspar dos sapatos nos paralelepípedos negros da rua, um ou outro grunhido de rancor, aqui e ali o rasgar de tecidos, o baque surdo dos murros. Uns curtos fios de sangue escorrendo pelos rostos.

O cansaço venceu-os por um momento. Detiveram-se, ofegantes, um em frente ao outro, como duas bestas em confronto. Alisaram as cabeleiras, loura a do Franca, preta a do Magalhães.

Foi então que o polícia apareceu. Sem uma palavra, plantou-se ali, em frente dos contendores, sem que ninguém tivesse dado por ele. Olhava os estudantes com uns olhos calmos de goraz. Franca, o mais enérgico, fitou o polícia de frente, tão aflito e com os olhos tão espavoridos e atrozes, de louco, que na sua mente terá perpassado o desejo de lhe dar um empurrão. Indiferente, o agente da autoridade iniciou um diálogo sereno com os lutadores e com amigos comuns, que davam informações gaguejadas.

Os mais novos trataram de dispersar, receosos. Num ápice, o meu grupo do 2.º ano desandou, tremebundo e em silêncio, até ao Jardim da Sereia. Um medo inexplicável durou até à Praça da Repúbli.

Manuel Carlos F. Costa.

 

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