O mundo adverso dos mais pobres

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- Vá com Deus que hoje não tenho nada que lhe dar, era a resposta que tantas vezes ouviam aqueles que, no dia-a-dia, batiam aos portões a pedir esmola. E, não raro, a sua voz superava o raivoso ladrar dos cães, com quem as relações nunca foram amistosas. - Um caldinho ao “probezinho”, rogavam eles à hora do comer se vislumbrassem alguma hipótese de aquecer o estômago. - Eh ti Marau, não sobrou nadinha e eu ainda não cozi a broa esta semana. E o velho olhava para a figueira de pingo de mel ali ao lado, na esperança de avistar algum fruto maduro que pudesse deitar abaixo com o cajado. Não se pense no entanto que as maneiras para com esta gente eram sempre cordatas e piedosas. Nada disso, pois quando o pobre apresentava deficiências físicas ou e psíquicas e tinha comportamentos que fugiam ao normal, essas atitudes caíam no riso e na galhofa que animava uns tantos: era o Manel Atoino dos Tomeses que, se queria beber uns copos, era impelido a cantar o Ripópó e outras brejeirices no fim de um dia a fazer cestos; era o Manel Jequim Copas que, nas mudanças da lua, ficava mais transtornado e tocava percussão pela rua fora agarrado ao cântaro do leite; era o Bélinha, a quem a rapaziada, sentada no Cruzeiro, encomendava discursos em “charolês”, um dialecto inventado por ele quando, antes de perder o juizinho, foi levado para França e habitou num Bidonville; era o Manel Catuto que pegava pelos cornos as vacas bravas nas festas de Santo António a troco de um garrafão de vinho, ficando pior que um Cristo. Quais bobos da festa! Com os pedintes que habitualmente frequentavam as mesmas terras havia uma certa ligação às pessoas e, muitas vezes, eram eles quem trazia e levava as novidades, sendo muito comum o conhecimento que tinham das missas que as famílias mandavam rezar por alma dos seus mortos. E eles lá iam nas manhãs desses dias, hoje a Covões, amanhã às Febres, na outra ao Covão do Lobo, à Pocariça e por aí fora. Isto porque as ditas famílias pagavam a cada um vinte e cinco tostões com direito ainda a uma malga de café com sopas de broa. Eram as chamadas missas pagas aos necessitados. Porém, a história destes movimentos de mendigos e a forma como aconteciam não se ficava assim, tal como contou o tio José Repas, de 94 anos, que confirmou tais andanças por esta região, indo mais longe: - Deve rondar os oitenta anos quando por cá andaram a pedir uns seis aleijados, alguns igualmente malucos. Esmolavam por conta de um tal Correia, também pedinte, que os arranjou nos confins de Viseu. Às casas onde fossem bater deixavam sinais, a maneira que aquele tinha de os controlar e, já noite, entregavam-lhe as esmolas, pois apenas tinham direito ao comer, pouco e quando havia! Periodicamente desapareciam, mas voltavam sobretudo aqui à Praia da Tocha, no tempo em que os barcos iam ao peixe, onde ajudavam a puxar as redes, para matar a fome. E concluiu: - Alguns eram de tal modo aleijados e tolosque a gente interrogava-se como diabo conseguiam eles cá chegar!

E eu pranto-me a meditar n’ “Os Irmãozinhos” de Cesário Verde!

(Imagem retirada da net)

 

                                                                                                                                                                                                                                  António Castelo Branco