UMA MARIA QUE TRABALHAVA NOS ARROZAIS

 

Observamos no rosto muitos anos de trabalho, muito sofrimento e uma grande sabedoria popular. Aos 11 anos fez exame da 3ª Classe, foi a melhor aluna da Escola, mas as condições de pobreza impediram-na de dar continuidade aos estudos. Não lhe cortaram, ainda assim, a veia de poetisa popular.

Na sua terra natal, havia um Grupo de Marias onde convivia muitas vezes. Nesses encontros, a nossa Maria recitava poemas da sua autoria. Uma companheira pediu-lhe o caderno de muitos poemas para editar um livro. A pedinchona prometeu a edição de um livro, mas desapareceu e a nossa Maria nunca mais viu os seus versos: “Perdi-lhes o rasto, salvaram-se alguns que entreguei a uma filha.”

Aos 12 anos, nos Campos do Baixo Mondego, começou a trabalhar nos arrozais. Quase todos os dias saboreamos arroz confeccionado de múltiplas maneiras, mas não sabemos o trabalho que deu antes de chegar às nossas mesas. Vou contar-vos através da Maria.

Entra-se no ciclo do arroz. Na primeira etapa, em Março, com a terra alisada, era semeado em tabuleiros e permanecia em viveiros até Abril. As Mulheres desta faina, quando encontravam “olheiros” (buracos na terra), ficavam enterradas até aos ombros. Só a ajuda do patrão, da força de um homem, conseguia libertá-las, com um utensílio de madeira, daquele pesadelo.

Na fase seguinte, Maio-Junho, era a plantação individual tipo pata de galinha, em terra enlameada, onde era necessário usar meias até à cintura e, descalças, atravessar pequenas passadeiras para não estragar a planta do arroz. Estas plantas eram transportadas em carros de bois, “numa espécie de andores”, divindades que merecem a nossa devoção gastronómica.

Na terceira fase era necessário saber distinguir “o trigo do joio”, neste caso a meã do arroz. Era preciso mondá-lo. Sempre com pés descalços, tentando evitar as sanguessugas. O trabalho tinha de ser perfeito, caso contrário não tinha comercialização ou era vendido ao desbarato. Da meã faziam-se molhos que eram encaminhados para alimento dos gados.

Em Agosto era ceifado, atado aos molhos, transportado em carros de bois para junto das debulhadeiras. Ao sair ia para as eiras, a fim de secar bem. Caso isso não acontecesse, era devolvido pela Fábrica. É importante salientar que existia um fiscal, que picava os sacos de serapilheira com uma agulha de certificação.

A palha do arroz era enfardada e vendida para alimentação dos animais, enquanto a “casca com trinca era o alimento das nossas capoeiras”.

O Tio Chico Costa foi seu patrão durante trinta e cinco anos, começando a ganhar seis escudos por cada jorna, das 9h até às 19h. Antes e depois desse horário ia para outros patrões fazer horas extras, para ganhar mais um poucochinho. Muitas vezes, “a minha mãe mandava-me às 03H30 da madrugada para a fila da padaria, para comprar aquele racionado e indispensável alimento, o pão. Outras vezes o nosso pequeno-almoço era apenas leite da vaca taurina. Quase não dormia…”

No final da colheita, o Tio Chico Costa oferecia-lhe o almoço e a tarde desse dia. Era tempo de folia. O Rancho cantava e dançava aos sons de um saxofone, de um clarinete e de um violino. “Eu inventava as canções, algumas de agradecimento por nos dar trabalho: Viva o Chico Costa/Viva a reinação/Viva a sua Esposa/ Que é Maria da Conceição. Trinta e dois anos a trabalhar/Na Plantação do arroz/Com lama até á cinta/Foi o que meu Pai me propôs. Nunca neguei trabalho/Trabalhei até poder/Agora que já não posso/Às minhas Filhas tenho de obedecer./Se pensavas que o arroz caía do céu, como em dia de noivado, estás enganado.

Com a morte do seu patrão, num acidente de tractor quando alisava as terras, entrou em cena “um genro intratável, homem mau, não sabia lidar com as pessoas, pensava mais no dinheiro do que nas trabalhadoras”. A nossa Maria mandou-o às urtigas e foi trabalhar para uma Fábrica de Cestos, de verga de vime, onde ganhava vinte escudos diários… até que um dia fechou.

Passou a cultivar todo o tipo de hortaliças, saía de casa às quatro da manhã com um cesto à cabeça e outro numa das mãos, para às sete estar em Coimbra no Mercado Municipal. Na ida e no regresso fazia dezasseis quilómetros.

Já tinha as hortaliças biológicas encomendadas de véspera, mas um dia não apareceram os compradores por motivos justificados. Não vendeu nada e ainda perdeu vinte e cinco tostões, o preço da licença diária de venda. Os Pobres têm quase sempre azar em tudo… 

Tanta Maria maltratada, esquecida, pobre, sofredora, operária, trabalhadora agrícola em arrozais e quintais, com tantas rugas na cara, mas com tanta sabedoria na mente e com tantos afectos.

Esta MÃE CORAGEM vive perto de Coimbra, tem duas filhas - uma em Portugal, outra a trabalhar na Noruega -, cinco netos e dois bisnetos, estes a viverem em terras escandinavas. O bisneto toca saxofone, clarinete e órgão e a bisneta aprende clarinete.

Orgulhosa da Família, apela aos mais jovens para se amarem, respeitarem os mais velhos e caminharem no Bem e na Ajuda. Teve sempre como lema “a Fé, a Esperança e a Caridade”.

Olha com saudade para a sua terra natal… E chora quando vê as fábricas fechadas, construções esventradas e abandonadas com tantos braços desempregados. O Arroz, a Polpa de Tomate, a Cerâmica, a Azulejaria, os Cestos de Vime, o Tijolo…

 

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Maio/2018

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