O carneiro da Rosaira da Póvoa

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Era da minha terra a tia Rosaira que tinha como únicos bens uma casa muito pobre e, frente à porta da cozinha um pequeno cortelho dividido com umas tábuas, onde coabitavam um porco e um carneiro. O sustento destes estava assegurado pelos seus desempenhos, pois ambos eram “inteiros” e muito procurados para emprenharem as porcas e as ovelhas. O celamim de milho ao varrasco fazia parte do acordo após ter feito o “serviço”, outro tanto acontecendo com o carneiro que as pessoas bem “aquartelavam”. Certa manhã, quando aquela se levantou e foi “aboseirar-se” ao curral, reparou que o carneiro estava cheio de sangue no focinho. Vendo um buraco na vedação, logo deduziu ter sido o porco que lho roeu e em desespero clamava: - Coitadinho, o que te havia de acontecer, amigo, foi esse malvado, com os “dentões” que mais parecem turqueses?! E logo ali jurou: - Vais ver o que te espera desgraçado, quando eu pedir ao tio Jequim Estarreja que tos arranque, pois para ires às porcas não precisas deles. Devido aos ferimentos, o animal teve de ser abatido enquanto os queixumes da mulher continuavam: Não teve sorte nenhuma o pobre do meu carneiro.

 A estória correu pela aldeia sobretudo por quem costumava solicitar os bons ofícios do malogrado carneiro que era tão certinho no “trabalho”. Estava ali o mote para mais uma tirada dos rapazes ao darem conta que tinham ali assunto para umas risotas:  - Eh ti Rosaira, sempre é verdade que o porco roeu o focinho ao carneiro? E ela, lastimosa, logo referia a pouca sorte do animal, enquanto pormenorizadamente contava pela milésima vez como tudo acontecera.

 Mais de cem anos passados, o episódio continua a ser por aqui lembrado e a interpretação a respeito da sorte das pessoas ainda é sustentada pelo tal acontecimento que a rapaziada viria a emoldurar - A Mordisca, que já estava a um canto, ainda se casou com aquele achadiço e, pelos vistos, está a governar vida. E logo o remate: - Teve mais sorte que o carneiro da Rosaira da Póvoa! – A tia do Felício, que era muito beata, fez-lhe os bens ainda não há um mês, com a condição de a tratar até à morte. E olhem que tinha uma boa folha! Então não é que morreu ontem de repente?! – O sobrinho teve mais sorte que o carneiro da Rosaira da Póvoa! Mas num outro sentido: - O tio Manuel das Ânsias, desde que a mulher partiu, nem das vinhas trata! – Coitado, é um triste sem sorte, tal como o carneiro da Rosaira da Póvoa! - A filha do Faztudo carrega uns fígados tão malvados que não deixa o “home” andar com um tostãozinho no bolso! – É ele e foi o carneiro da Rosaira da Póvoa, mas aí a culpa recai naquele “bebe-auga”, porque não a “levou ao rego” quando devia!

Ao recordarmos como este e outros episódios tão singulares aqui pela Gândara chegaram até nós, não esqueçamos o jogo das palavras e pensemos que tudo isto só era possível porque a tia Rosaira se prestava a isso. Como por aqui se diz, “dava sorte”!

(Imagem retirada da net)

                                                                                                                                                                                                                                     António Castelo Branco