O CASAL DEMONÍACO

 

Ontem, ao escrever sobre os Tumultos Nika (o evento que provocou a chacina dos Azuis e dos Verdes em Constantinopla, no tempo do imperador Justiniano), lembrei-me do que o historiador Procopius de Cesarea escreveu sobre este imperador e sobre a sua mulher, a imperatriz Teodora, na sua “História Secreta” (também conhecida por Anecdota), acusando-os de não serem seres humanos. No capítulo XII da obra, diz-nos a certa altura Procopius:

 

“Portanto, para mim, e muitos outros de nós, estes dois pareciam não ser seres humanos, mas verdadeiros demónios, e o que os poetas chamam de vampiros: e que colaboravam para ver como poderiam mais facilmente e mais rapidamente destruir a raça e os propósitos dos homens; e assumindo corpos humanos, tornaram-se humanos-demónios e assim convulsionaram o mundo. E poderíamos encontrar provas disso em muitas coisas, mas especialmente no poder sobre-humano com que concretizavam a sua vontade.

 

(…) E alguns dos que estavam com Justiniano no palácio pela noite fora, homens que eram puros de espírito, acharam que viram uma estranha forma demoníaca assumindo o seu lugar. Um homem disse que o imperador se levantou de repente do seu trono e caminhou em redor (e de facto ele nunca permanecia sentado por muito tempo), e imediatamente a cabeça de Justiniano desapareceu, enquanto o resto de seu corpo parecia tomar uma forma fluida; e vendo isto o espectador ficou horrorizado e temeroso, pensando que os seus olhos o estavam a enganar. Mas logo percebeu que a cabeça desaparecida se enchia e se juntava ao corpo de novo, de uma maneira tão estranha como o deixara.

 

Outro disse que estando um dia ao lado do Imperador quanto este se sentava, o rosto se transformou de repente numa massa disforme de carne, sem sobrancelhas nem olhos nos seus devidos lugares, nem qualquer outra característica distintiva; e que, depois de um certo tempo, o seu semblante retomou a aparência natural. Eu descrevo estes casos não como alguém que os viu, mas ouvi-os de homens que tinham a certeza de que tinham visto essas estranhas ocorrências na época. (…)”

 

E sobre Teodora, a Imperatriz meretriz:

 

“Além disso, alguns dos amantes de Teodora, do tempo em que ela era ainda actriz, dizem que às vezes durante a noite descia sobre eles um demónio, que os expulsava da sala, a fim de poder passar a noite com ela. E havia uma certa dançarina chamada Macedonia, que pertencia à facção Azul em Antioquia, que veio a ter muita influência. (…) Essa Macedonia, dizem eles, conheceu Teodora na época de sua chegada [a Antioquia] do Egipto e da Líbia; e quando a viu seriamente preocupada e rejeitada pelos maus-tratos que recebera de Hecebolus e pela perda do seu dinheiro durante essa aventura, tentou animar Teodora lembrando-a das leis do acaso, graças às quais ela voltaria provavelmente a ser a dona de um coro de moedas [i.e., as leis do jogo iriam permitir que ela enriquecesse de novo]. Então, dizem eles, Teodora costumava contar como um sonho a visitou naquela mesma noite, dizendo-lhe que não pensasse em dinheiro, pois quando ela chegasse a Constantinopla, iria partilhar o divã do Rei dos Demónios [i.e., de Justiniano], e deveria tornar-se sua esposa e ser, depois disso, a amante de todo o dinheiro do mundo. E foi o que aconteceu, na opinião da maioria das pessoas.”

 

Procopius de Cesarea: Anecdota, 12. [tradução minha]

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Esta obra de Procopius vale bem a pena ser lida hoje. Nela o historiador bizantino descreve os eventos de Nika (Janeiro de 532) e a personalidade de Justiniano, Teodora e seus mais próximos colaboradores, de uma forma que não se atrevera a fazer na sua obra oficial (a sua História das Guerras). A Anecdota, escrita por volta de 555, foi retida pelo seu autor com medo de represálias, e publicada por sua ordem apenas depois da sua morte. O discurso é nela, assim, livre. De lembrar que tanto Justiniano como Teodora foram canonizados pela Igreja. Vá lá o diabo entender isto.

 

PS: temos agora por cá uns imperadores e reizinhos da mesma estirpe. E alguns até são exímios em mandar cortar cabeças.

José Costa Pinto.