A caça às bruxas vista de Moledo

"O mundo que deixou de educar cavalheiros para passar a fabricar adolescentes."

 

Quando, há nove anos, o dr. Octávio Ribeiro deu guarida nas páginas do seu jornal a um velho minhoto praticamente contemporâneo do Titanic e nascido antes da descoberta da penicilina, tive oportunidade de alertá-lo para os enormes perigos que corria. Um deles – o principal, para os meus benevolentes leitores – seria a grande incompatibilidade entre o meu tempo e as novidades do tempo presente.

O último carro que amei (um luxo de celibatário já tão fora de moda como o ‘foxtrot’), foi um Jaguar E-Type cabriolet de 1970 que circula periodicamente; os meus fatos eram feitos pelo filho do alfaiate do velho Doutor Homem, meu pai; mantenho o hábito de beber café com mistura de cevada ao pequeno-almoço; ao contrário das novas gerações, continuo a espremer a pasta de dentes pelo fundo, e não pelo meio; também continuo a lamentar o fim da meteorologia na televisão, bem como a escassez de Água de Melgaço – e vivo rodeado de livros, grande parte deles herdados do meu tio Alberto (gastrónomo e bibliófilo de São Pedro de Arcos) e do velho Doutor Homem, meu pai.

Além disso, creio bem que a minha vida amorosa não tenha interesse para quem acha que a beleza de Vivien Leigh já pertence à pré-história. Vivi, portanto, num mundo que conheceu o pecado e a virtude, anterior à "libertação sexual" e à moda unissexo. A minha sobrinha Maria Luísa, a eleitora esquerdista da família, vive escandalizada com os recentes casos de assédio sexual noticiados pela imprensa, como uma astronauta acabada de chegar de Marte.

Relutante, explico que não podia ser de outra maneira num mundo que deixou de educar cavalheiros para passar a fabricar adolescentes saciados que vivem dependurados sobre os telemóveis. Ela acha isto reaccionário – e é bem capaz de ser. Esse mundo ensinou que não podia haver frustrações, nem limites – nem falso pudor. Acontece que o pudor é quase sempre falso. Sem ele seríamos todos sátiros à solta, satisfazendo em público apetites privados, e fazendo dos apetites privados um espectáculo para todos os nossos semelhantes.

Dia a dia, semana a semana, aumenta o número das "denúncias de assédio sexual" e eu dou graças por ser um objecto que poderia ser exibido ao lado das múmias no Museu Britânico, como uma curiosidade inócua e desinteressante. Diante desta caça às bruxas dou graças por ter ultrapassado a barreira dos 90 e, portanto, ser anterior a Adão e Eva.

 

António Sousa Homem

( In Revista Sexta- Correio da Manhã)

 

Esmeralda Botto Antas