AS PAIXÕES NO FUTEBOL

"O que a emoção da cólera não faz  no momento da exasperação, não o faz nunca; além disso, esquece-se facilmente. Porém, a paixão do ódio leva tempo a enraizar-se profundamente e a pensar no inimigo. Aquele que vai, encolerizado, encontrar-se convosco no vosso quarto para vos dizer palavras duras no seu entusiasmo, pedi-lhe, delicadamente, que se sente; se isso resultar, mas suas injúrias já serão menos violentas, porque a comodidade de estar sentado é uma ausência de tensão muscular que fica mal com gestos  ameaçadores e os gritos do homem em pé. Pelo contrário, a paixão leva tempo, por muito violenta que possa ser, a atingir o fim que se propôs; é reflectida. A emoção age tal como uma àgua que rompe o dique; a paixão, tal como uma torrente que cava um leito cada vez mais profundo […]
2Onde há muita emoção, geralmente há pouca paixão […]
KANT- Antropologia sob Um Ponto de Vista Pragmático - §§ 74, 80, 81

Kant estabelece aqui a distinção entre paixão e emoção. Esta é efémera e irreflectida, aquela, durável me reflectida. É por isso que a paixão constitui um atentado à liberdade e ao domínio sobre si muito mais profundo do que a emoção. Pode ser bom considerar esta dedução como um paradoxo. Com efeito, por que razões Kant, ao passo que admite a aliança da mais fria reflexão e da paixão, afirma que esta é mais prejudicial ao domínio de si do que a emoção que vence a nossa razão?
A emoção é súbita e, porque é imprevisível, o homem que é sua vítima perde, subitamente, todo o domínio sobre ele mesmo; está "fora de si". A cólera fornece aqui um excelente exemplo, mas seria igualmente possível evocar o pavor. A emoção é acompanhada de reacções corporais mais ou menos marcadas: tremores, risos nervosos e, no caso da cólera, uma tendência para bater. Alguns filósofos, tal como William James, interrogaram-se aliás se estas reacções não seriam a causa verdadeira da emoção. Com efeito, se tentarmos representar para nós mesmos um homem encolerizado sem os fenómenos corporais que acompanham esta emoção, imaginamos um homem que julga oportuno, sem por um instante se comover, bater em quem o  ofendeu. Por outras palavras, este homem, que de modo algum perdeu o controlo de ele mesmo, representa a cólera, mas não sente verdadeiramente. Compreende-se, então, a sabedoria do conselho de Kant: retirar à emoção o seu cortejo de correlatos corporais é reduzir a sua intensidade imediatamente. O homem encolerizado que aceita sentar-se acalma-se sem demoras.
Este tipo de remédio infelizmente não tem qualquer eficácia sobre as paixões. O ódio não se esquece de um dia para o outro. Está, contrariamente à cólera, carregado de segundos pensamentos e cálculo, com um sangue-frio que faz tremer, os meios para atingir o objectivo. Sendo assim, compreende-se que a alienação passional seja muito mais grave do que a perturbação emocional. A paixão serve-se da razão, recruta-a para o seu serviço. Ao julgar dispor de uma certeza que não quer pôr em dúvida, o homem apaixonado abusa da razão para justificar a paixão. O homem vítima do ódio encontra sempre mais razões para odiar o inimigo, o apaixonado para gostar da amada, o ciumento para suspeitar da companheira (pense-se em Otelo). A sua servidão é total, pois, se a razão é momentaneamente derrotada pela emoção, é duravelmente corrompida pela paixão.
(In Pensamentos e Filosofia)

ANTARCO - (ANTonio ARvelos COimbra)