ASSUNTO MUITO ESTRANHO

Nos tempos que correm, pantanosos de corrupção, ainda ocorrem surpresas estranhas alegadamente repletas de indícios ou, as mentes, tão causticadas, já veem mentira, indícios, estranheza em tudo o que respiram.
Afigura-se um caso destes, o assunto que o Observador dá à estampa, a requerer o diagnóstico aprofundado de especialidades multifacetadas, em tempo útil.
RS

FUNDOS COMUNITÁRIOS

Dinheiro público paga formação de um dia com direito a bilhetes para o Rock in Rio

 

POCH (Programa Operacional Capital Humano) recebe dinheiro do Estado e fundos europeus. Gastou 11.800 euros numa formação de um dia para 20 funcionários com direito a bilhetes para o Rock in Rio.

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Ilustração: Maria Gralheiro/Observador

Autor

Rui Pedro Antunes

O Programa Operacional para o Capital Humano — uma estrutura de missão financiada por dinheiro público e fundos europeus com o objetivo de promover a qualificação da população — vai pagar 11.800 euros para que 20 funcionários participem numa formação de um dia da Rock in Rio Academy 2018 e recebam um bilhete para um dos dias do festival. Cada pacote (formação e bilhete) vai custar 590 euros por pessoa, pagos por dinheiro público e comunitário. Os três membros do Conselho Diretivo, que aprovaram esta formação em maio, vão usufruir deste pacote, que será ainda atribuído a 11 chefias e seis técnicos.

A direção do POCH, questionada pelo Observador, confirmou a “presença de alguns membros Comissão Executiva e outros quadros que constituem o corpo de funcionários” nesta formação, marcada para o dia 27 de junho. Sobre o que justifica esta escolha e como se enquadra na missão do programa, o POCH explica que na “Rock in Rio Academy” são “abordados e treinados conceitos modernos de Gestão e Boas Práticas internacionais a nível organizacional”.

Nos argumentos utilizados para justificar a compra destes pacotes Rock in Rio estão o facto do evento na academia  ser “promovido e coorganizado pela SFORI – Strategy For Improvement, entidade formadora certificada pela DGERT — a Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho” e o facto do evento se destinar “a profissionais de todas as áreas do setor privado e público.” Os responsáveis do POCH enaltecem ainda a experiência da organização, mais conhecida pelos festivais de música: “O ‘Rock in Rio Academy’ formou já mais de mil profissionais do sector privado e público desde 2015, entre Portugal e Brasil.”

O POCH vê também outra vantagem: os funcionários da estrutura ficam logo com várias horas de formação, das que são exigidas por lei, preenchidas: “No estrito cumprimento da legislação portuguesa, e atendendo que a empresa promotora da formação é uma entidade certificada pela DGERT, a frequência desta mesma ação de formação conta, nos termos da lei, para o número mínimo de horas que cada colaborador deve frequentar anualmente de acordo com o Código Laboral em vigor”.

O POCH, como explicam os responsáveis do programa na resposta enviada ao Observador, “tem como objetivo central contribuir para a qualificação dos portugueses”. O que também inclui, obviamente, os membros da própria estrutura. Por isso, a direção do POCH “considera inevitavelmente a qualificação como fator de dignificação e motivação dos seus recursos humanos, para a melhoria da qualidade do seu desempenho profissional e, consequentemente, do serviço público que presta”.

O programa: De Lady Gaga ao “Uau a todo o momento”

Falta então conhecer o programa da Academia Rock in Rio (RiR) para perceber como contribui para a formação de funcionários do POCH. Tudo começa com um Welcome Coffee (08h30) e, antes do Coffee Breake das 10h15, os trabalhadores vão poder assistir a uma intervenção de 25 minutos de Roberta Medina (vice-presidente do Rock in Rio) com o tema: “Propósito e cultura como alavanca do negócio”. Segue-se um “Momento #AAA — Learning experience. Cultura de Inovação”, que será dado por Allan Costa e Arthur Igreja, conferencistas na área da comunicação e do digital.

Depois é a vez de Alexandre Real (sócio da SFORI) liderar o “Networking Challenge”, que irá durar 20 minutos. A seguir ao pequeno intervalo para café terá a palavra Juliana Ribeiro, diretora de Ticketing do Rock in Rio, para um “mini-case challenge” que tem como mote “Cancelamento de Ariana Grande/Lady Gaga“.

Os funcionários do POCH (e os restantes alunos da academia) têm depois uma conferência de mais meia-hora com o CEO do Rock in Rio, Luís Justo, sobre “Pilotar a Organização” e uma outra conferência de 25 minutos com Agatha Arêas, diretora de marketing do RiR, com o tema: “Entregar o sonho e o propósito da marca através da experiência.”

O programa só termina às 19h40 com um “Happy Hour e Networking“, mas imediatamente antes desse último ponto há uma “Palestra Magna” com Roberto Medina com a duração de uma hora, precedida de uma visita de hora e meia à cidade do rock com uma prometida “explicação de técnicos in loco“. Há ainda outras palestras com cerca de meia hora. A mais longa da parte da tarde (de 50 minutos) tem como tema: “Learning Pitch — Uau a todo o momento! — Como manter o cliente “encantado”. Costumer Experience.

Terminada a componente teórica, o “pacote standard” da Rock in Rio Academy — com o custo de 590 euros — inclui ainda o “acesso a um dia do festival em setor relvado a 29 ou 30 de junho“. O “pacote VIP” (o POCH garante não ter adquirido nenhum) inclui “acesso ao festival em setor VIP a 29 ou 30 de junho” e custa 787 euros.

Diretores e chefes com bilhete e formação garantida, técnicos não

O Plano de Formação do POCH para 2018 foi aprovado no dia 11 de maio. De acordo com a “deliberação nº03-CD-POCH/2018”, à qual o Observador teve acesso, o plano já incluía a “RIR Academy” e estabelecia que a formação era destinada a “Comissão Diretiva e chefias”.

Os membros da Comissão Diretiva do POCH são o presidente Joaquim Bernardo (que chegou a integrar gabinetes nos governos de Sócrates e de Guterres, nas áreas do emprego e formação profissional) e as vogais Ana Lima das Neves (ex-adjunta do ministro Tiago Brandão Rodrigues no atual Governo) e Cristina Jacinto.

Na terça-feira, dia 5 de junho, a vogal Ana Lima das Neves enviou um email perto do meio-dia a informar que tinha sido autorizada a frequência de 20 participantes na Rock in Rio Academy, divididos num primeiro grupo com acesso direto à formação: “Três membros da Comissão Diretiva, 11 chefias”. E um segundo grupo, de seis técnicos, que, segundo Ana Lima das Neves, terão de ser selecionados para o acesso à formação: “Um de cada equipa, sendo que o mesmo deverá ser escolhido de acordo com o método que cada chefia de equipa considerar adequado (p.e. mérito ou sorteio)”.

Sobre a formação do Rock in Rio, a POCH explica que é “obrigação da Autoridade de Gestão assegurar a formação dos seus quadros em áreas técnicas específicas de grande relevância para o POCH, tais como Contratação Pública, Comunicação, Informática, Auditoria e Gestão Financeira”, mas “também em áreas transversais como a liderança, gestão de equipas, estratégia, inovação e políticas públicas.”

O plano de formação, justifica a mesma entidade, “tem um orçamento anual de cerca de 130 mil euros, o que representa 2% do orçamento anual total para o funcionamento da Estrutura de Missão”. Olhando para os números de outra forma, o valor gasto com a participação num dia do evento da academia Rock in Rio equivale a quase 10% daquilo que a entidade tem disponível para o ano todo em formação.

Questionado sobre se as tutelas (ministérios do Planeamento e Infraestruturas e Educação) tinham conhecimento deste procedimento, o POCH esclareceu que não foi “dado conhecimento da mesma à tutela” e acrescenta que “o procedimento para aquisição do serviço de formação cumpriu o estabelecido no Código dos Contratos Públicos”. Apesar disso, uma visita ao site Base.gov permite verificar que não há qualquer contrato efetuado pela estrutura de missão que tenha sido publicitado.

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A Rock in Rio Academy abre portas pela segunda vez em Portugal

Há ainda outras opções a nível da formação que, sabe o Observador, são questionadas internamente. Uma delas, com o título “Futures, Strategic Design & Innovation”, foi realizada no ISEG pela vogal Ana Lima das Neves, teve a duração de quatro dias e custou quatro mil euros. Questionada pelo Observador, a direção explicou que “foram estudadas as possíveis e adequadas ofertas de formação estratégica para os diversos quadros do POCH” e esta formação acabou por ser aprovada “com o objetivo da mesma [a vogal Ana Lima das Neves] adquirir conhecimentos técnicos e metodológicos de construção de cenários para pensar o futuro em áreas determinantes para os Fundos Europeus, dos quais se destacam o Futuro do Trabalho e o Futuro da Tecnologia nos anos vindouros.”

No plano de formação do ano passado, ao qual o Observador também teve acesso, é autorizado o financiamento de um mestrado em “Políticas Públicas”, um mestrado em “Comunicação, Culturas e Tecnologias de Informação” e um mestrado em Matemática. A prática de pagar os mestrados aos funcionários não é habitual na Administração Pública, mas o POCH, garante que está a cumprir a lei, uma vez que só paga o primeiro ano de mestrado. Isto porque, defende a direção, o primeiro ano de mestrado equivale a uma pós-graduação e o pagamento de pós-graduações é permitido por lei.