Boa vindima e bom vinho

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Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia 

DN 11.11.2018


1.* Há um texto famoso do Papa Pio X (foi canonizado) que exprime bem o
que a Igreja não é nem pode ser. Mas foi esse o modelo que tantos, contra a
vontade de Jesus e até contra a consciência democrática, quiseram impor,
incluindo *Pio X: “A Igreja é, por natureza, uma sociedade desigual. É uma
sociedade composta por uma dupla ordem de pessoas: os pastores e o rebanho,
os que têm um posto nos diferentes graus da hierarquia e a multidão (plebs)
dos fiéis. As categorias são de tal modo diferentes umas das outras que só
na hierarquia residem a autoridade e o direito necessário para mover e
dirigir  os membros para o fim da sociedade, enquanto que a multidão não
tem outro dever senão o de aceitar ser governada e cumprir com submissão as
ordens dos seus pastores”* (na Encíclica *Vehementer Nos*).

Este é o modelo de uma Igreja desigual e hierárquica, desembocando numa
hierarcocracia, “o domínio absoluto de uma casta de celibatários — reais ou
em muitos casos fictícios — sobre toda a Igreja”, como escreveu Victorino
Pérez Prieto.

*Jesus, ao contrário, tinha dito: “Sabeis como aqueles que são considerados
governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os
grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser
grande entre vós faça-se vosso servo e quem quiser ser o primeiro entre
vós  faça-se o servo de todos. Pois também eu não vim para ser servido, mas
para servir e dar a vida em resgate por todos”.*



*2.*  Durante o passado mês de Outubro, de 3 a 28, *esteve reunido em Roma
o Sínodo dos Bispos sobre os jovens e, durante os debates e agora no
documento final, mostra-se uma vontade real de mudança.* Nesse documento,
lê-se expressamente que o Sínodo quer que se avance para *uma “Igreja
participativa e co-responsável”*. Participaram 267 padres sinodais de todo
o mundo, 49 auditores, 23 peritos e *30 jovens, também de todo o mundo.
Estes jovens não votaram, mas puderam exprimir-se e até apoiaram
ruidosamente algumas afirmações* — um deles até terá perguntado ao Papa se
podiam dar uma assobiadela no caso de total discordância, ao que Francisco
respondeu: a mim podeis fazê-lo, a eles é melhor não. *Escreveram uma carta
ao Papa, declarando: “As novas ideias precisam de espaço e tu deste-no-lo”.*

*Os temas discutidos durante o Sínodo e reflectidos no documento
final,* aprovado
por uma maioria superior a dois terços, são de sumo interesse para os
jovens de hoje:  o corpo, a sexualidade, os abusos, a não discriminação da
mulher, o universo digital, as migrações, os pobres, as drogas, a política,
o trabalho e a precariedade, o diálogo ecuménico, intercultural e
inter-religioso, a iniciação cristã, a vida das Igrejas locais, a família,
a vocação, a sua participação na vida da Igreja.  *Ficam aí, numa
brevíssima síntese, alguns pontos do documento que, no meu entender,
poderiam despertar mais curiosidade para os leitores.*

*2. 1.* *Sinodalidade*. O processo sinodal (sínodo é uma palavra de origem
grega, com o significado de caminhar juntos) foi decisivo para este Sínodo,
e o documento convida a que as Conferências Episcopais e as Igrejas locais
continuem este percurso, “empenhando-se em processos de discernimento
comunitários que incluam também aqueles e aquelas que não são bispos nas
deliberações, como fez este Sínodo”. A experiência vivida fez “tomar
consciência da importância de uma forma sinodal da Igreja para o anúncio e
a transmissão da fé. A participação dos jovens contribuiu para acordar a
sinodalidade, que é uma dimensão constitutiva da Igreja: Igreja e Sínodo
são sinónimos”.

*2. 2.* *Corpo e sexualidade*. “Os jovens reconhecem ao corpo e à
sexualidade uma importância essencial para a sua vida e no percurso de
crescimento da sua identidade, pois são imprescindíveis para viver a
amizade e a afectividade”.

Reconhece-se que os desenvolvimentos da ciência e das tecnologias
biomédicas influenciam fortemente “a percepção do corpo, levando à ideia de
que é modificável sem limites”. Ora, “a capacidade de intervir no ADN, a
possibilidade de inserir elementos artificiais no organismo (*cyborg*) e o
desenvolvimento das neurociências constituem um grande recurso, mas
levantam ao mesmo tempo interrogações antropológicas e éticas.” Não se pode
caminhar por uma via acrítica da tecnocracia quanto ao corpo, ignorando os
perigos de abusos e instrumentalizações por parte dos dinamismos económicos
e políticos.

Nalguns contextos juvenis, difunde-se “o fascínio por comportamentos de
risco como instrumento para testar-se a si próprios, procurar emoções
fortes e obter reconhecimento”. Para lá de outros fenómenos antigos, como
“a sexualidade precoce, a promiscuidade, o turismo sexual, o culto
exagerado do aspecto físico, constata-se hoje a difusão invasora da
pornografia digital e a exibição do próprio corpo *on line*”. Estes
fenómenos constituem “um obstáculo para uma maturação serena”.

No esforço para transmitir a beleza da visão cristã da corporeidade e da
sexualidade,  é “urgente uma busca de modalidades mais adequadas, que se
traduzam concretamente na elaboração de caminhos de formação renovados”.
Para isso, é necessário formar  agentes pastorais credíveis, “a partir da
maturação das suas próprias dimensões afectivas e sexuais.”

E lá está o artigo 150 do documento, aquele que, mantendo a maioria de dois
terços, mais votos contra teve. Aí se lê: “Há questões referentes ao corpo,
à afectividade e à sexualidade que precisam de uma elaboração
antropológica, teológica e pastoral mais aprofundada, a realizar nas
modalidades e nos níveis mais convenientes, dos locais ao universal. Entre
elas, emergem em particular as relativas à diferença e harmonia entre
identidade masculina e feminina e às inclinações sexuais. Neste ponto, o
Sínodo reafirma que Deus ama todas as pessoas e assim faz a Igreja,
renovando o seu empenhamento contra toda a discriminação e violência com
base sexual. Reafirma igualmente a relevância determinante antropológica da
diferença e reciprocidade entre o homem e a mulher e considera redutivo
definir a identidade das pessoas a partir unicamente da sua orientação
sexual.” E acrescenta: “Existem já em muitas comunidades cristãs caminhos
de acompanhamento na fé de pessoas homossexuais”, recomendando o Sínodo que
se continue a favorecer esses percursos, pois “as pessoas são ajudadas a
ler a sua própria história, a aderir com liberdade e responsabilidade ao
seu chamamento baptismal, a reconhecer o desejo de pertencer e contribuir
para a vida da comunidade”. Deste modo, “ajuda-se todos os jovens, sem
excluir ninguém, a integrar sempre mais  a dimensão sexual na própria
personalidade, crescendo na qualidade das relações e caminhando para o dom
de si.”

*2. 3.* *Abusos*. Existem diversas formas de abuso: de poder, de
consciência, sexuais, que foram praticados também por alguns bispos,
sacerdotes, religiosos e leigos, que “provocam nas suas vítimas, entre as
quais muitos jovens, sofrimentos que podem durar a vida toda e que nenhum
arrependimento pode remediar”. Será necessário ir às causas na sua raiz: “o
desejo de domínio, a falta de diálogo e de transparência, as formas de vida
dupla, o vazio espiritual, bem como as fragilidades psicológicas, que são o
terreno no qual prospera a corrupção.” O Sínodo põe o acento
particularmente no clericalismo, que “interpreta o ministério recebido como
um poder e não como um serviço gratuito e generoso a oferecer”. Agradece a
todos os que “tiveram a coragem de denunciar o mal imediatamente: ajudam a
Igreja a tomar consciência do acontecido e da necessidade de reagir com
decisão”. E reafirma “o compromisso firme na adopção de medidas rigorosas
de prevenção que impeçam a repetição dos abusos, a partir da selecção e da
formação daqueles e daquelas a quem serão confiadas tarefas de
responsabilidade e educativas.”

*2.* 4. *Mulheres*. Afirma-se, por um lado, a diferença entre homens e
mulheres e, por outro, a igualdade, condenando-se a discriminação com base
no sexo. “Não se pode esquecer a diferença entre homens e mulheres com os
seus dons particulares, as específicas sensibilidades e experiências do
mundo. Esta diferença pode ser um âmbito em que nascem formas de domínio,
exclusão e discriminação das quais precisam de libertar-se todas as
sociedades e a própria Igreja. A Bíblia apresenta o homem e a mulher como
parceiros iguais diante de Deus: toda a dominação e discriminação baseada
no sexo ofende a dignidade humana.”

Os jovens e as jovens exigem que se reflicta sobre a condição e o papel das
mulheres na Igreja e na sociedade. Neste domínio, as reflexões no Sínodo
requerem uma  “corajosa conversão cultural e de mudança na prática pastoral
quotidiana”.  Concretizando: “Um âmbito de particular importância é o da
presença feminina nos órgãos eclesiais a todos os níveis, também em funções
de responsabilidade, e da participação feminina nos processos de decisão
eclesiais. Trata-se de um dever de justiça, inspirado no modo como Jesus se
relacionou com homens e mulheres do seu tempo.”

*2. 5.* *Ambiente digital*. O ambiente digital é uma característica
fundamental do nosso mundo. Já não se trata apenas de “usar” instrumentos
de comunicação, mas de “viver numa cultura amplamente digitalizada que tem
impactos profundíssimos na noção de tempo e de espaço, na percepção de si,
dos outros e do mundo, no modo de comunicar, de aprender, de informar-se,
de entrar em relação com os outros”.

Reconhecendo que *Web* e *social network* são “uma praça na qual os jovens
passam muito tempo”, o documento sublinha os seus benefícios: “constituem
uma oportunidade extraordinária de diálogo, encontro e intercâmbio entre as
pessoas, para lá do acesso à informação e ao conhecimento”, podendo colocar
também informação independente em circulação, combatendo as *fake news* e
pondo-se ao serviço dos direitos humanos, da participação sócio-política e
da cidadania activa. Por isso, a pastoral deverá igualmente aproveitar as
suas vantagens e oportunidades.

Mas os perigos e ameaças não podem ser ignorados. O ambiente digital é
também “um território de solidão, manipulação, exploração e violência, até
ao caso extremo da *dark Web*”, não esquecendo a progressiva perda de
contacto com a realidade concreta, os obstáculos levantados ao
desenvolvimento de relações interpessoais autênticas, o *cyberbullying*, a
difusão da pornografia e a exploração das pessoas com intuitos sexuais ou
mediante jogos de azar.

*2. 6.* *Espiritualidade e vocação*. De modo geral, “os jovens declaram
estar em busca do sentido da vida e mostram interesse pela espiritualidade,
mas essa atenção configura-se sobretudo como uma procura de bem-estar
psicológico mais do que como  abertura ao encontro com o Mistério do Deus
vivo”.

Múltiplos factores, que se expressam na cultura do provisório, afectam a
capacidade de decisão dos jovens. Questão decisiva para a Igreja e para a
sociedade tem a ver com o vínculo intergeracional.



*3.* *Há quem, não sem razão, faça notar que este documento final do Sínodo
traz alguma frustração*, na medida em que fica aquém das promessas do
*Instrumentum
Laboris*, preparado num Pré-sínodo com os jovens e que seria o instrumento
de base para o Sínodo.

Assim, a título de exemplo, não consta a sigla LGBT, que, pela primeira
vez, apareceu num documento oficial da Igreja, precisamente no *Instrumentum
Laboris*. Não se cumpriu a expectativa  de um Dicastério (Ministério) no
Vaticano para os jovens. Como vai a Igreja conquistar a confiança dos
jovens? Quem os escuta? As mulheres continuam excluídas do ministério
ordenado e nem sequer puderam votar no Sínodo; mais: enquanto que os
superiores religiosos presentes (por exemplo, o Padre Sosa, Geral dos
jesuítas) votaram, as seis mulheres superioras de congregações e
associações religiosas não foram autorizadas a fazê-lo. Não se fala no fim
do celibato obrigatório nem sequer na possibilidade da ordenação de homens
casados, questão levantada no Sínodo...

*Então? Por um lado, é preciso ter presente que o Sínodo não poderia criar
situações de ruptura, com o perigo de um cisma na Igreja.* Por outro, não
se deve renunciar à esperança. De facto, *o texto do documento final foi
entregue ao Papa, que, a partir dele, fará uma Exortação Apostólica, que se
espera vá mais além.* De qualquer modo, *Francisco, referindo-se aos
resultados do Sínodo, disse que foi “uma boa vindima, que promete bom
vinho”.* Entretanto, é a fermentação. Um exemplo: no próximo Sínodo, em
Outubro de 2019, sobre a Amazónia, a ordenação de homens casados estará na
agenda.