ESTÁ NO CÉU!

Espinhosa missão a do sargento naquele fim de tarde!

Depois de palmilhar mais de uma légua desde a paragem da carreira até à aldeia do Covelo, entrou na taberna do Ti Felisberto, afastou o mosquedo que o veio saudar zunindo-lhe aos ouvidos, e perguntou ao taberneiro:

- É por aqui que mora a Maria da Conceição Sales?

O Felisberto chegou-se à porta, desbarretou-se perante o militar e apontou-lhe o dedo para a quelha que ficava ao fim da estrada.

- É ali, do lado esquerdo. Abra a cancela e entre que a Micas deve estar em casa.

O sargento agradeceu e desceu rua abaixo martelando as pedras da calçada com as botifarras grossas da tropa.

Encastrada no muro caiado viu a cancela de pau. Ouviu o gemer dos gonzos quando a empurrou. Ao fim de uma comprida e estreita álea lá estava uma casita branca, modesta. Debaixo de um choupo ao lado de um regato cristalino volteavam num arame umas cuecas de criança, uns calções e um saiote, a secar ao vento.

De um lado e do outro uma horta com couves, alfaces, cebolas,alhos, pimentos…

No cabeço do outeiro em frente, a espessura macia de um pinheiral fechava o horizonte, como um reposteiro verde aveludado.

Era naquela casa que vivia a Maria da Conceição, bonita mulher de 25 anos com dois filhos. O Virgílio, com o mesmo nome do pai, de 7 anos que andava na 1ª classe e o Pedro de 1 ano que nascera cinco meses depois do marido ter ido para a Guiné como soldado.

Estava a mãe a explicar ao Virgílio onde andava o pai. Apontava-lhe no Atlas uma a uma as terras por onde ele já tinha passado. Bissau, Mansoa, Bafatá, Nova Lamego…

-Olha, meu filho, estás a ver onde está agora o teu querido papá?

E apontava-lhe no mapa a povoação de Dulombi.

O rapaz abria muito os olhos, e respondia a sorrir:

-Está na guerra, não é mãe?

- Sim meu filho, está na guerra…

Ela virou os olhos ao céu e disfarçou duas grossas lágrimas de saudade, apertando as folhas do atlas.

- Eu quero ver o papá. Deixa-me ir à guerra para lhe dar um beijo, pedinchou a criança.

Ela afagou-lhe o cabelo, dizendo-lhe que não podia ser, que a guerra era perigosa e que era muito longe.

- Mas o que é a guerra, mãe?

- Quando o pai voltar ele há-de contar-te, está bem?

Bateram à porta. Lá foi ele agarrado à saia da mãe para ver quem era.

- Se calhar é o pai, disse ele esperançoso enquanto se encaminhavam para a porta.

Escancarou-se a porta e no umbral desenhou-se a silhueta corpulenta do sargento já em contraluz com o sol poente.

--É aqui que mora a Sra. Maria da Conceição Sales?, perguntou o militar limpando com a manga da farda o suor que lhe ensopava a testa.

--Sou eu--respondeu a mãe do Virgílio.

--É a mulher do Virgílio Sales?

--Esse é o papá--disse de lado o rapazito, fitando o soldado com os seus grandes olhos castanhos.

--Pois, minha senhora...

O sargento olhava em redor, perturbado, engasgado, aflito, e continuou:

--Pois o Virgílio, número mecanográfico 1230969, da Companhia de Caçadores, 2474, nosso querido e valente camarada...

-O que lhe aconteceu? Onde está ele?, balbuciou a pobre mulher.

O sargento apontou com o indicador para o céu e sem encontrar outra forma de lhe dar a fatal notícia, terminou:

--Está no céu!

E deitou a correr pela estrada fora, porque não tinha coragem de

assistir àquele lance angustioso. Não tinha ânimo, ele, que no calor

dos combates afrontara os maiores perigos!

Depois da ceia, o miúdo quis ainda ver o seu pai. Abriu o mapa, e

quando chegou ao sítio chamado Dulombi, disse:

--Encontrei-o! Aqui está ele, mãe!

--Já não está, meu filho--respondeu-lhe com voz rouca a mãe, lavada em lágrimas.

O pequenito olhou para ela, e perguntou:

--Então?

--Está no céu!

--Está no céu? Então vou procurar o céu, aqui no mapa…

Aldeia-do-Covelo.jpg 

Rui Felício

 

 

NB: A fotografia é da Aldeia do Covelo, na região de Viseu, de onde era natural o soldado de que falo na história e de que ficcionei o nome verdadeiro, como se compreende.