O PODER SOBERANO

É duvidoso que as sociedades tenham alguma vez vivido no estado natural. A diversidade dos modos de vida, tal como a complexidade das instituições, demonstram que, mesmo entre as mais primitivas, a natureza está longe de ter fornecido um modelo de regulação que se teria perdido ou degradado, milagrosamente, com o tempo. De facto, os modelos sempre foram culturais, ou seja, produzidos pelo subtil trabalho do imaginário sobre as forças hostis ou acolhedoras a que deviam adaptar-se.
Em contrapartida, o certo é que há poucas sociedades que não se tenham pensado como a expressão de uma ordem natural ou sobrenatural; como se fosse evidente que, ao ler a natureza ou ao interrogar os céus, se pudesse extrair as regras de justiça, os pólos de poder ou as hierarquias conformes à ordem das coisas. Que os poderes  aí tenham encontrado o que queriam não deve surpreender, visto que, ao tirarem a legitimidade de forças misteriosas, não conseguiram uma obediência que devia menos à pressão do que à tranquila certeza de que, ao submeterem-se a um homem, se honrava um ordem tão sagrada como imutável.
Sob este ponte de vista, é não menos certo que a obra de Maquiavel assinala uma ruptura que tem valor de desencantamento. É que, se se observar bem as sociedades, constata-se que nada há nelas que manifeste a existência de uma ordem ou traia a presença de uma qualquer providência. O que se dá a ler é mais a desconcertante contingência dos factos atravessados pela vontade de poder de uns, tal como a violência e a paixão dos outros.  Assim, é neste mundo dominado pela violência e constantemente ameaçado pela anarquia que compete apenas à vontade humana elaborar uma ordem que deva mais à razão do que à natureza. Hobbes lembrar-se-á disto; para ele, os indivíduos nada são no estado de natureza senão uma massa conflitual, confusa e desordenada; e é apenas de acordo com um acto racional pelo qual delegam a força num poder soberano que poderão fazer prevalecer a sua humanidade sobre a animalidade que têm em si. O Estado nasceu, logicamente, deste contrato, como o artifício necessário à manutenção da ordem social. Todavia, Rousseau tem razão em lembrar  que um contrato só tem valor se supuser o livre compromisso dos que se obrigam e que nenhuma necessidade pode exigir que se sacrifique a liberdade à segurança. . Ou seja, o Estado só pode enquadrar a sociedade com a condição de realizar os fins que ela se propõe e, entre estes, a liberdade dos membros  que a constituem. Tarefa difícil, certamente, visto que precisa de legislar sem pressões, reunir sem nivelar, esclarecer sem impor. Após o fracasso do Estado totalitário, a história parece hesitar entre o Estado liberal e o Estado-providência para realizar, no melhor dos interesses de todos, o conjunto das suas exigências. Para já, pode dizer-se que está longe de ter resolvido a questão.

ANTARCO