Preso por ter cão e preso por o não ter

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O 10 de Junho é Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas e o actual Presidente da República, avocando a grandeza da data, dividiu as comemorações entre uma cidade portuguesa e um país ‘irmão’ que hospede comunidades lusas (França, Brasil, Estados Unidos da América e Cabo Verde, por esta ordem). E, para presidir aos festejos, Marcelo tem escolhido personalidades naturais da terra anfitriã do evento.

Dos preclaros discursos de Onésimo Teotónio Almeida em 2018, Sobrinho Simões em 2017 e João Caraça em 2016, em Ponta Delgada, Porto e Lisboa, respectivamente, poucos guardarão memória, mas, desta vez, na lembrança colectiva ficará com certeza o discurso de João Miguel Tavares, em Portalegre, quando disse a cada um de nós “Tu contas. Tu também contas”.

Reconheço que não presto grande atenção às cerimónias do ‘culto da pátria’, porventura porque, à excepção do desmaio de Cavaco Silva na Guarda perante uma manifestação de populares que exigiam “Presidente incompetente, deixe o seu palácio para melhor gente”, as comemorações tinham a justa fama de serem um grandessíssimo frete. Pois, este ano, paradas e rituais à parte, a irreverência de Marcelo frutificou e o presidente da efeméride conseguiu a proeza de agitar o país, revelando-se, para uns, um afoito progressista e, para os demais, um populista reaccionário.

Expectante, também eu atentei nas palavras do polémico jornalista, e, se é certo que grande parte das considerações de João Miguel Tavares podem noutro tom ser ouvidas no autocarro ou no café – como muitos argumentaram na pressuposição de que a sua coincidência com o discurso popular de pronto as desqualificaria -, é também verdade que o jornalista dividiu o país entre os políticos e os outros, assacando aos primeiros a exclusiva responsabilidade de mudar o mundo, numa manifestação de um perigoso maniqueísmo que lhe é característico e a que não me vergo.

Mais relevante, porém, foi para mim a lembrança da essencial missão de quem exerce funções de estado: prover pelo bem-estar de todos os portugueses, equalizando oportunidades e assegurando a coesão social capaz de garantir um futuro melhor aos mais desprotegidos. De tez mais clara e menos cabelo, pareceu-me ouvir Barack Obama a dizer ao povo “Yes, we can”, a propósito da necessidade de um novo pacto social respeitador das minorias. Cá, como lá, é urgente fazer-nos acreditar, a todos, e em especial àqueles que não têm na bagagem um passaporte para o sucesso, garantido pelos pergaminhos do apelido ou pelo calibre da conta bancária.

Ora, João Miguel Tavares abdicou de uma elocução pomposa e erudita, repleta de palavras ocas e protocolares mesuras e, inesperadamente, cumpriu a sua função, dando voz às críticas dos portugueses. De Portalegre ou de qualquer outro lugar onde “A cada raminho novo/Que a tenra acácia deitava/Será loucura!…, mas era/Uma alegria/Na longa e negra apatia/Daquela miséria extrema”, como disse José Régio na Toada de Portalegre, as palavras de João Miguel foram tão banais e importantes como aquele raminho novo, uma alegria.

E nós, tão desabituados estamos de novas alegrias que as estranhamos, e, por isso, de imediato amesquinhámos a ousadia de quem agitou o torpor de marchas e paradas bafientas. Porque falou para o zé povinho (ou porque o tivesse ignorado), porque atacou a classe política (ou porque a tivesse poupado, de mão estendida), porque foi pouco formal (ou porque se tivesse esgotado em rapapés e salamaleques)… tanto faria, seria sempre preso por ter cão e preso por o não ter, como diz o ditado.

Chamemos-lhe populista, paternalista, papagaio emplumado…, mas, mais tarde, no rescaldo de todas as Operações, Marquês, Tutti Frutti, Teia, Final, e todas as outras que por aí virão, não nos queixemos. Aos meus insultos, guardo-os, para o Constâncio e para o Berardo, para o Carlos Costa e o Vara, para o Salgado e para o Sócrates, e para todos os outros apodrecidos senhores cujas politiquices nos abandonaram a este triste fado. E já me vão faltando os enxovalhos para tantos medíocres.

Filomena Girão

Advogada