Água benta
O céu rasgara-se num prenúncio de dilúvio apocalítico. Pareceu-me, por isso, uma excelente tarde para visitar o cemitério.
Como sempre que ia conversar com a mãe, arranjei-me ainda melhor do que habitualmente. O vestido seria o novo Print flowers vermelho, curto e de decote em bico. Teria de me contentar com a gabardina técnica lima e os botins campesino de cor laranja a descombinarem com a mala Trapézio croute fúcsia da estação passada, já que o calor infernal daquele julho não convidara ninguém a comprar roupa para a chuva. Tudo Bimba y Lola. Não era esse o epíteto com que pouco discretamente os outros se referiam ao meu mau gosto? Bimba, Lola. Adorava aquela marca. Que o meu mau gosto de nova rica chocasse todos! Só me interessava exibir o meu dinheiro ao bando de pseudointelectuais falidas e fingidas, que borboleteavam em volta de mim e do sacripanta do meu marido. Tinha ido à cabeleireira de manhã, pela terceira vez naquela semana (há mais de trinta anos que não lavava o cabelo em casa) e acabara de me maquilhar. Na garagem da minha luxuosa vivenda lamentei que a chuva me impedisse de levar a Lambretta LN cor-de-rosa choque e escolhi o Porsche Carrera, depois de ter pegado, mecanicamente, no remendado chapéu-de-chuva preto. Ainda antes de sair de casa, pus a tocar o CD de músicas de baile dos anos 70. Estava composto o cenário para a viagem de 50 quilómetros.
Pelo caminho, ia assobiando as melodias. Tinham-me ensinado esta arte os meus irmãos mais velhos, enquanto em dias de tempestade seguíamos para a escola, os quatro abrigados debaixo do grande chapéu-de-chuva preto, que de tão esburacado pouco ou nada nos protegia da água — nem das chapeladas da mãe, quando algum de nós conseguia escapar às vergastadas do pai. Ainda assim, nesses dias de intempérie, era-nos permitido calçarmos as socas que, se não nos protegiam da chuva, pelo menos impediam que as pedras, os tojos e outros perigos do chão nos sangrassem a pele como nos dias secos. Engolíamos os assobios ao aproximarmo-nos da tasca da aldeia, onde àquela hora, já a mãe, senhora chique, tomava o pequeno-almoço, por 25 tostões, valor cobrado pela professora para que as crianças se secassem numa braseira. Nós nunca conhecemos o calor daquele lume.
Afastei os maus pensamentos com a mão, como se afastasse o vapor que se levantava do alcatrão da estrada, e voltei à música. Ia saboreando os quilómetros devagar. As visitas à mãe deixavam-me sempre quase eufórica.
A entrada do cemitério fazia-se por um portão largo, de ferro tão enferrujado como a aldeia. Tudo tinha parado no tempo. As casas mantinham-se tão decrépitas como antes, os cães vadios continuavam esfaimados, as ruas lamacentas e os poucos habitantes tão velhos e cinzentos como sempre. Estacionei o carro no largo encharcado e entrei naquele espaço lúgubre, de cabeça erguida, sem me preocupar com a água que o chapéu preto e remendado pouco aparava. A sepultura da mãe ficava quase à entrada, pelo que sabia que lá chegaria em estado físico perfeito. E assim foi. Como de costume, mantive-me de pé, junto da campa de terra batida, cuja lápide, carcomida por longos anos de solidão e desleixo, apenas exibia um nome, uma data de nascimento e uma de morte. Nenhum de nós fizera questão de homenagear o desamor da mãe. Como habitualmente, exibi à nossa morta as minhas roupas caras, falei-lhe das viagens que fazia com o meu marido cirurgião, das festas que dava no meu magnífico jardim, dos livros que lia e dos espetáculos a que assistia. Meias verdades, meias mentiras.
Depois da afronta habitual a esta mãe seca de afetos, virei-lhe ostensivamente as costas, pavoneando o luxo da minha vida atual e a amarra negra e esfarrapada ao passado.
Só ao chegar ao carro o sorriso escarninho esmoreceu. A viagem de regresso fez-se, como de costume, por entre as recordações da fome, dos pés descalços, das pancadas e dos olhares lascivos que o meu pai começara a deitar-me, mal saí da infância. Mas, ao contrário do habitual, poucos quilómetros percorridos, precisei de parar o carro para limpar as lágrimas que me escorriam pelo rosto tingido de manchas acastanhadas pelas inúmeras horas de solário.
Num repente, a luz incidiu no vidro do carro, quase me encandeando. O céu abrira uma nesga de azul que foi rasgando a cortina cinzenta, abrindo caminho ao sol de verão. Também a minha alma começou a libertar-se da humidade pegajosa e a fome, que raramente conseguia saciar, levou-me a entrar na cidade que, apesar de distar poucos quilómetros da minha aldeia natal, nunca tinha visitado na infância nem na adolescência.
As ruas recomeçavam a apinhar-se de gente em busca do sol, do verão, das cores. E foi exatamente isso que me encantou. Obviamente, já tinha ouvido falar, e visto imagens, dos chapéus-de-chuva suspensos da cidade. Mas, o brilho das cores que me explodiam na alma ao passear pelas ruas extasiou-me como nunca. Ali tudo era animação, alegria, vida. O arco-íris que, no alto, me protegia do sol intenso fez-me perder a cabeça. Numa rua menos movimentada, descalcei as botas, tirei a gabardina e comecei a dançar no chão ainda molhado. Agora, os pés procuravam, propositadamente, as poças de água que me refrescavam a pele.
Ruborizada da dança e da alegria, abri o coração à vida-futuro: numa barraquinha da feira de artesanato comprei um belíssimo chapéu-de-chuva salpicado de várias cores!
Sem hesitar, voltei ao carro, esquecendo a fome, e conduzi de regresso ao passado. Entrei no cemitério, que, apesar do sol, se mantinha lúgubre e dirigi-me à campa da mãe. Por cima da terra batida depositei o chapéu-de-chuva negro e esburacado. Abri o novo e colorido chapéu, não para me proteger do sol, mas para que a mãe percebesse que, naquele momento, eu me libertava da raiva das amarras do passado.
Respirei fundo e, de sorriso tranquilo, virei costas à campa. O meu futuro começava ali.
PC