DICIONÁRIO CASUAL DE CONCEITOS: Igualdade vs Desigualdade

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Os seres humanos querem ser, ao mesmo tempo, iguais e desiguais. Não se apercebem disto por falta de disciplina reflexiva. Por isso são tão imensamente contraditórios e tão inesperados.

Os seres humanos, contra a evidência da realidade, forcejam por ser iguais entre si. Mas fazem os possíveis por ignorar que não são iguais em forças físicas, nem em poder intelectual, nem em qualidades endógenas e exógenas de sobriedade, de capacidade de sacrifício, de dádiva no prosseguimento de objectivos de vida, de generosidade para com os outros, de confraternidade, numa palavra, de QUALIDADE íntima. Contra tudo isto, exigem ser iguais. E ponto final.

Certo dia, nos bons tempos em que eu exerci alguma militância cívica na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo sido o assessor da Professora Crabée Rocha, mulher do escritor Miguel Torga, na gestão do Conselho Directivo dessa Faculdade, convivi de perto com um Aluno comunista, que me disse, certo dia: - Os ricos comem lagosta e bebem champanhe francês. O que eu quero é que os pobres possam comer o mesmo e beber a mesma coisa.  Eu repliquei que, em muitos casos, os fruidores dessas delícias tinham andado mais de metade da vida para reunirem as condiçóes que lhes permitiram, . depois de uma luta longa e ingente contra as dificuldades da existência, comer lagosta e beber champanhe francês. Com esta réplica, eu não ganhei outra retribuição que não fosse, para todo o futuro, a animosidade deste Aluno ...

Depois disto, dei-me ao exercício de analisar minuciosamente as diversas reacções de seres humanos, machos e fêmeas, à questão da igualdade e da desigualdade. Cheguei a conclusões interessantes. Os que se tinham promovido na vida, à custa dos méritos e esforços próprios, revelavam uma reactividade nómada e dúplice: por um lado, apresentavam a certificação do seu esforço e qualidades pessoais para justificarem o confortável estatuto de que fruíam, no seu presente; mas, por outro, revelavam claramente a nostalgia pelo ideal da igualdade rasa, que se revelasse punitiva em relação aos que se lhes sobrepujavam! Por outro lado, os que não tinham subido na escala social, dada a circunstância de nada terem feito para isso, insistiam enfaticamente que o mundo era de uma injustiça gritante, e que só a revolução universal, com uns milhões de enforcados ou de guilhotinados, poderia repor o mundo no seu correcto equilíbrio.

Isto abalizou-me a declarar que os seres humanos reverenciam a igualdade ou a desigualdade , em função do lugar que efectivamente ocupavam na escala social. Há aqui uma lógica que se revela dúplice, em sentido próprio e em sentido ético : os que não se alçapremaram ao nível dos depoentes são tidos como incapazes, por não se terem aplicado à "luta pela vida", nos mesmos termos dos que lhe julgam os méritos - e , sobretudo, a falta deles ! Mas, no mesmo golpe intelectual, os que se reconhecem como superiores - seja na escala económica, na académica, na mundana ou em qualquer outra - são apodados pelos que ocupam estatutos relativamente inferiores, como gente insensível, imperialmente dominadora, execrável, dotada de corações pétreos, incorrigivelmente nocivos. Só falta declarar, por extenso, que um bom tiro no meio da testa desta gente, ou uma saudável corda de garrote, reconduziria o mundo à sua forma exemplar ...

Por isso, estando aqui confinado à minha lura de observação, eu penso que os seres humanos se julgam próximos do padrão divino. Admitimos Poseidon, mas desde que sejamos Apolos. E os Zeus, todos os Zeus deste mundo, são uns irrefragáveis e definitivos pulhas!

Amadeu Homem