O boi da câmara…

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Hoje lembrei-me da minha sogra que já morreu há alguns anos, dez para ser mais preciso. Não se ria muito, mas quando leu este texto riu de uma forma que nunca mais esquecerei. Riu a bandeiras despregadas…

Também preciso, de quando em vez, saborear o prazer de um sorriso. Faz-me falta. Hoje é um desses dias.

Muito tempo antes de ter deixado de usar calções, brincava eu um dia em frente da casa do meu avô, junto ao sapateiro e ao talho, quando, de repente, ouvi uma agitação dos diabos na rua que desemboca na ponte da praça. – Fujam! Fujam! É o boi! É o boi! Mas eu não via nada. Ouvia apenas os avisos e gritos muito agudos das mulheres, até que, de repente, um barulho diferente do habitual começou a impor-se por si. Na curva logo a seguir à barbearia do Zé do Rego apareceu o boi da câmara numa correria louca bufando que nem um desalmado. Fiquei aterrorizado. O pão com manteiga caiu no chão. – Tenho que fugir. Podia ter-me enfiado na loja do sapateiro, cuja porta estava a uns escassos três metros, mas para isso tinha que correr em direção à fera. Como não tinha idade e nem vocação para forcado optei por correr por uma rua íngreme que vai dar ao Rossio na esperança de que a besta continuasse na sua marcha desenfreada em direção ao Balcão. Mas o bicho, ao ver-me, deverá ter pensado que seria um bom alvo para descarregar a sua agressividade. E não é que muda de direção! Faz uma perpendicular sem derrapar e persegue-me furiosamente. Valeu-me a casa da Senhora Aurora que tinha a porta aberta e pela qual entrei esbaforido parando no andar superior onde costumava ir comprar as boroas para a minha avó a vinte e cinco tostões a unidade. O coração batia tanto que até parecia saltar pela boca. Não consegui dizer nada à Senhora Aurora que, muito surpreendida, olhava para mim, pensando na falta de maneiras de um menino bem comportado que, habitualmente, chamava-a à entrada. Sem dizer nada, e tendo dado conta de que algo de anormal se estava a passar, saiu, voltando passado algum tempo. Eu ainda estava meio aterrorizado quando a ouvi dizer: - O menino já pode ir para casa, o boi anda no Rossio. E assim foi, sem dizer uma única palavra desci as escadas, saí para a rua e olhei para o lado esquerdo pensando: - Se o boi anda no Rossio, então, pode muito bem voltar para trás e apanhar-me. Enchi-me de coragem e corri que nem um doido até entrar no portão da casa do meu avô. Fechei-o bem, e nesse dia não mais voltei a sair.

O boi era mesmo agressivo. Era o boi da câmara. Agora não sei se a sua agressividade era inata ou se era adquirida. Às tantas devia ser da responsabilidade de ambas. O desgraçado do animal tinha que puxar a carroça da carne do matadouro até ao talho. Acredito que não devia ser fácil ver e ouvir os seus irmãos a serem massacrados e depois transportar os seus restos para alimentar a cáfila dos humanos. Passou-se. E eu, sem ter qualquer culpa no cartório, ia pagando as favas.

Sabe-se que a agressividade animal é devida a fatores genéticos que começam a ser desvendados. É possível separar e desenvolver espécies em função da sua agressividade inata. Estudos que começaram há mais de cinquenta anos com raposas prateadas e, mais recentemente, com ratos permitiram aos cientistas criar animais ultra domesticados a ratos ferocíssimos que chegam a atacar sem qualquer receio um ser humano. Outros, mais dóceis, deixam fazer tudo e até procuram os seres humanos. E estamos a falar de ratos! Tudo indica que os genes responsáveis pela agressividade serão basicamente semelhantes nas diversas espécies. O controlo dos mesmos, ou a seleção de animais sem os ditos, poderia ser uma forma de domesticar muitos animais selvagens contribuindo para evitar a sua extinção. Assim, um dia, teríamos manadas de búfalos selvagens a seguir-nos docilmente, e, até, poderíamos correr o risco de nos lamberem com as suas línguas rugosas ou fazerem-nos festas com as suas caudas, ou, então, passarmos a ter tigres ou leões como animais domésticos a enrolarem-se ao redor das nossas pernas ou a quererem sentar-se ao colo, o que não seria muito aconselhável. Procurar conhecer a genética da agressividade, na expectativa de podermos vir a domesticar muitos animais selvagens, constitui um sinal de má consciência face ao contributo que temos dado para o seu desaparecimento. Mas talvez possam ser úteis as descobertas que começam a ser produzidas. No caso dos humanos, e face à “selvajaria” que muitos expressam nos seus comportamentos, uma inativação de alguns genes poderia ser muito interessante. E em vez de andarmos a querer domesticar os animais selvagens, o melhor seria centrar a atenção na “domesticação” de alguns seres humanos que, afinal, acabam por ser muito mais agressivos e perigosos do que o boi da câmara.

Salvador Massano Cardoso