Cartas de amor: aflições de quem as tem
Capítulo V
O dia, ao contrário do anterior, apresentava-se ameno e solarengo. Naquele fim de outubro, as folhas acobreadas já começavam a abandonar-se dos ramos que as haviam sustentado verdes e frescas. As bancas exteriores das lojinhas locais cobriam-se de castanhas, nozes e avelãs. A azáfama de sexta-feira invadia ruas e ruelas, praças e jardins. Donzília passara o dia num constante vaivém entre a cozinha e a sala. Não pretendia encontrar-se com Dionísio antes da sua chegada para jantar, por isso evitou sair à rua. Limpou e arejou a casa, lavou o serviço de jantar Limoges e os copos de cristal, passou a ferro, com esmero, a toalha branca de linho e renda e perfumou o ambiente com alfazema. Optou por dispor, na sala, alguns candeeiros de luz suave ao invés das velas, cujo cheiro detestava. Às sete da tarde, o bacalhau com broa estava a entrar no forno. Quando Dionísio tocasse à campainha, correria para o ligar. E, pontualmente, às oito horas, a campainha tocou. O livreiro subiu as escadas e parou à porta, que Donzília já tinha aberto, com uma garrafa de Porca de Murça numa mão, uma belíssima caixinha de chocolates na outra, e aquele sorriso entre o embaraço e a ansiedade no rosto. O jantar decorreu com grande tranquilidade e estranhavam até a facilidade com que discorriam sobre os mais variados assuntos, inclusive histórias íntimas de cada um. O pensamento de ambos convergia para a estupefação de nunca terem percebido como teria sido bom partilharem a companhia um do outro mais cedo. Donzília gostaria que Dionísio abordasse o assunto das cartas, mas ele – por pudor, certamente, pensava ela – não parecia disposto a tal. Não importava. Tacitamente, ambos sabiam que o assunto existia, que tinha sido ele a trazê-los até ali e que o enternecedor momento em que um deles afloraria as palavras escritas trocadas durante tanto tempo não tardaria.
E assim estavam neste enleio quando, subitamente, mão pesada bate à porta da rua. Alarmada, Donzília imaginou, imediatamente, uma turba voraz que a vinha difamar - quiçá apedrejar! – por receber um homem, sozinha, em sua casa, ainda para mais à noite. A mão insistia nas pancadas e Dionísio tentava acalmá-la. Não seria nada de cuidado, certamente, garantia-lhe ele, mas não havia como não atender a tão insistente chamada. Esbaforida, Donzília dirigiu-se à porta, assustada com os passos de gigante que, escada acima, faziam ranger os velhos degraus de madeira – a porta da rua devia ter ficado aberta -, e abriu-a num rompante. Estacou, imediatamente, a voz suspensa no espanto. A um metro e meio de si, de ramo de gerberas na mão, plasmava-se o Inácio Africano. De voz presa na garganta, olhando por cima do ombro de Donzília para Dionísio, o pobre homem mal conseguiu balbuciar um ‘boa noite’. Atabalhoadamente, esticou o braço para que Donzília pegasse nas flores e explicou, entre dentes, que vinha prestar solidariedade pelo acontecido no adro da igreja. Tartamudeou um “Volto noutra altura”, girou sobre os calcanhares e desceu as escadas, deixando Donzília e Dionísio embasbacados. Estranhamente, ambos voltaram à sala e o resto do serão decorreu sem que nenhum dos dois comentasse a bizarra visita. No entanto, a intimidade estabelecida anteriormente quebrara-se. Dionísio despediu-se, no fim da noite, sem alento para novo convite e Donzília, como mulher séria, não tomou a iniciativa.
“Volto noutra altura”?! Donzília não conseguia adormecer depois das emoções da noite. Se, por um lado, a companhia de Dionísio a encantava e lamentava ter perdido tanto tempo sem dela usufruir, por outro lado, o estranho comportamento de Inácio desassossegava-a. Mas, naquele momento, nada havia a fazer. A manhã trar-lhe-ia resposta às suas inquietações, estava certa.
Por isso, mal o dia raiou, tomou banho, vestiu-se, perfumou-se (pelo sim pelo não) e tomou um frugal pequeno almoço. Às 8 horas já rondava a mansão do Inácio Africano. Na verdade, ultimamente, nem se reconhecia. Trocava cartas de amor com um desconhecido, frequentava a casa de outro quase desconhecido à noite, convidava um homem para jantar em sua casa e, agora, apresentava-se, cedo, pela manhã, em casa de outro. Que vilanias não andariam a passar de boca em boca pela vila! Mas Donzília sabia que estava a pagar por alguns momentos de língua afiada que protagonizara no passado. Paciência!
Assim que percebeu movimento por trás de um cortinado, tocou a sineta do assustador portão de ferro forjado que desencorajava conhecidos e desconhecidos. Aliás, o casarão fora responsável pelo alargamento da ruela, pois havia sido construído, há alguns anos, no seu extremo, num terreno descampado. Erguido de acordo com a aparência e maneira de ser do proprietário. Possante, obscuro e enigmático. Mas Donzília não era mulher de se deixar intimidar por minudências. Resoluta, pegou na aldraba e bateu com força. Antes que repetisse a façanha, ouviu o estalar de um pesado ferrolho, o portão abriu-se e a figura imponente de Inácio perfilou-se diante dela. Donzília esperava encontrá-lo embaraçado, de olhos fugidios. Por isso, a altivez com que a convidou para entrar desconcertou-a. O homem encaminhou-a para a biblioteca (o Inácio Africano tinha uma biblioteca?!) e, antes que Donzília pudesse dizer ao que ía, desculpou-se por se ter dirigido a sua casa sem pré-aviso e causado um certo transtorno. Afinal, tinha lá ido, num gesto de solidariedade, prestar os seus respeitos e oferecer a sua compreensão no caso do largo da igreja. O tom de voz tinha, no entanto, laivos de rudeza e troça. Felizmente, um miado estridente soou algures na casa e Inácio pediu-lhe licença por uns instantes. Donzília começava a recompor-se da estranheza da situação em que se metera quando os seus olhos pousaram na escrivaninha: como gato escondido com o rabo de fora, num minúsculo compartimento em forma de arco, espreitava a ponta de um envelope pardo, com cheiro de flores silvestres! Sem conseguir conter a curiosidade, aproximou-se da escrivaninha e, como quem não quer a coisa, mas não querendo outra, puxou a ponta do envelope. Logo se apercebeu de mais uns quantos que cobriam pedaços de papel rascunhados com palavras de amor.
Em sobressalto, Donzília deixou tudo no mesmo sítio e saiu da casa antes que Inácio regressasse. Não saberia o que dizer-lhe. Desorientada, correu pelas ruas circundantes, sem rumo, apenas tentando organizar as ideias. Mas, então, o autor das cartas anónimas não era Dionísio?! Tinha a sensação de percorrer as mesmas ruas, repetidamente, em círculos, tal como a sua vida nos últimos tempos.
PC