Confissão 5

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Como já deveis ter percebido, as minhas quatro confissões anteriores eram a brincar. Eu sou de facto do Diogo Cão. O Diogo Cão é um clube de Vila Real onde se revelou o Simão Sabrosa e onde durante uns anos jogou o meu filho. É um clube modesto, que nem sequer tem um campo de jogos seu. O Diogo Cão joga (ou pelo menos jogava) num campo de futebol de uma aldeia a uns quilómetros da cidade, com o inverosímil mas encantador nome de Mão do Homem. Não possui bancadas e os balneários às vezes não têm água quente, o que pode ser, como imaginam, desagradável no inverno transmontano. Os miúdos do Diogo Cão jogam à bola em muitos escalões, desde os pré-infantis aos júniores, e distribuem-se por mais de uma dezena de equipas, as As, Bs, Cs e outras, com um entusiasmo que só é possível em quem ama e acredita no que faz. Os treinadores são dedicados, se bem que por vezes pouco talentosos, e não recebem um tostão pelo que fazem. Mas não regateiam nada. Quando eu acompanhava as peripécias da bola no Diogo Cão, acontecia por vezes haver jogos com algum dramatismo, sei lá, um jogo contra a equipa de juvenis do Ribeira de Pena (é só um exemplo, não tinha de ser mesmo contra o Ribeira de Pena, podia ser contra a equipa de iniciados do Chaves) em que incompreensivelmente o árbitro decidia favorecer a outra equipa e cometer erros de palmatória. Erros deliberados, que deixavam os miúdos confusos e sem entenderem por que razão um adulto ia sujar o que era uma coisa livre e bela entre vinte e dois jogadores de palmo e meio. Nessas alturas os miúdos choravam. Choravam de desgosto e de frustração, por causa da injustiça. Eu percebia então como as crianças são sensíveis à injustiça e ficava comovido. Só os adultos eram injustos, claro. É preciso ser-se adulto para se ser fria e deliberadamente desonesto. A desonestidade e a vigarice eram trazidas de fora do clube, que era pobre como job e não tinha dinheiro para divagações. Uma vez o presidente do Diogo Cão, cansado do que se passava, foi durante o intervalo à cabine dos árbitros na Mão do Homem. Ter uma palavrinha. Quando voltou, explicou-me que tinha ido resolver o problema: “fui-lhes dizer que lhes pagava o almoço, de outro modo os nossos rapazes não passavam com a bola do meio campo.” Os jogos eram ao domingo de manhã e não incluíam almoço para ninguém. Os miúdos levavam farnel e comiam na viagem de regresso.

 

O futebol da Diogo Cão era belo e encantado. As bolas tinham asas, os jogadores abraçavam-se quando jogavam bem e marcavam golo e abraçavam-se também quando jogavam mal e sofriam golos. Havia bolas nos olhos deles. A lama nas pernas vinha para casa e tinha de ser removida com uma faca. Parecia ouro. No frio, as mãos e as orelhas desenvolviam frieiras, medalhas de troféus de coragem e pundonor. As mães dos miúdos adoravam a lama e beijavam as feridas das pernas, e os pais rebentavam de orgulho.

O Diogo Cão é o maior clube de Portugal. É mil vezes maior do que o Benfica, o Sporting e o Porto. É no Diogo Cão que estão a felicidade, o clubismo, o amor e a lealdade. Os outros clubes, os grandes, só recebem as sobras, falsificações de plástico do desporto verdadeiro e eterno. Ao pé do Diogo Cão não são nada.

José Costa Pinto