MACHOS E FÊMEAS

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            Fuscas espreguiçou-se, languidamente, na fofa almofada, colocada num canto estratégico da sala. Fugira das mãos geladas da chuva e aquecia-se, agora, na poeira dos dedos quentes do sol tardio.

Havia dois meses que chegara àquela casa e reconhecia, apesar da rabugice que habitualmente demonstrava, que já se afeiçoara ao espaço e àquela dona de humores incertos, mas intensos. Apesar de partilhar a absurda mania de os humanos tratarem os gatos como se fossem idiotas e de o encher de festas lamechas. Chamava-lhe ‘’bichaninho’’ – ‘’bichaninho’’, ele!!! -, mas também tinha o seu feitiozinho, coisa que lhe agradava profundamente. Percebia-lhe o caráter semelhante às criaturas do mesmo género da sua própria espécie. Era volúvel e tinha acessos ora de fúria ora de uma lamechice enjoativa. Uma vez ouvira-a, de telemóvel na mão, dizer ao interlocutor: “Tenho horror do ridículo!”.  Sentia alguma solidariedade para com o pobre, que adivinhava ser, salvaguardadas as devidas diferenças, uma criatura humana do seu género. Mas, aquelas palavras da dona fizeram-no render-se a ela. Afinal, o género feminino devia ser todo igual! Ele, sim, considerava-se um gato de raça. Ciumento, interesseiro e desconfiado.

            Por vezes, a dona escorria mel, a voz aveludava-se-lhe e quase ronronava. Outras - a Fuscas eriçavam-se-lhe os pelos! -, quase a via pôr as unhas de fora, afiadas e prontas a rasgarem o pescoço do interlocutor. Apesar do caráter insolente de que se gabava, sentia um certo respeito por uma fêmea irritada. (Se ela pudesse ler-lhe as palavras! Não percebia por que é que as criaturas humanas do sexo feminino sentiam como pejorativa a palavra fêmea. Mas sabia que, se a dona o ouvisse … nem queria imaginar o que lhe aconteceria!) Sabia do que eram capazes. E a sua dona exasperava-se com alguma facilidade. Ou seria aquela criatura específica do género masculino que a levava a limites que já lhe pareciam ilimitados? A verdade é que não lhe conhecera outro interlocutor. Já percebera que ela ficava solenemente irritada quando percebia que ele lhe percebia os ciúmes de alguém, em algum lugar que ele nem presumia. E quando percebia que ele a picava e amuava, propositadamente. Enfim, apetecia-lhe dizer como nos filmes que a dona o punha a ver, sentado ao lado dela no sofá: “Get a room!” (Que ela não o ouvisse, claro!). Outras vezes falavam seriamente. Nessas alturas, Fuscas aguçava as orelhas para ouvir melhor. Ouvia-a responder-lhe, abespinhada e de nariz arrebitado: ” A vida é feita de momentos. O valor do tempo está na intensidade com que é vivido.”

            E não saíam daquilo. Ambos queriam o mesmo, ambos diziam o mesmo, ambos pensavam o mesmo, ambos caminhavam na mesma direção, mas insistiam em contrariar-se. A verdade é que ambos se sentiam seguros naquela zona de conforto, ora pachorrenta ora frenética. Que se entendessem! Aquilo estava para durar!

            O sol adormecera, de novo, e as nuvens derramavam-se sobre a Terra numa cortina de água cerrada. Fuscas enroscou-se mais na macia almofada e fechou os olhos ao som do sorriso da voz da dona.

                                                                                                                                                                                                                                                               P. C.

(Imagem retirada da net)