O sr. Fernando

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Bom, o senhor Fernando (pseudónimo) tinha uma barbearia nos anos 50 e 60, ali para os lados do lendário Zeca Martins. Ele próprio era uma espécie de lenda local. Frágil e delicado, incapaz de dizer um palavrão e de partilhar as más criações dos clientes, cortava os cabelos dos vilarealenses mais matarruanos – uma redundância para quem conhece a gente da Bila – com afinco e um silêncio nos lábios que resistia a todas as provocações. As más línguas diziam-no um pouco abichanado, aleivosia que ele não contrariava e que, sinceramente, suspeito que até o enchia de um secreto orgulho. "Em terra de labregos, use-se um pouco de perfume, se possível", esse era o seu lema. E que ele sublinhava polvilhando o ar à volta com umas vaporizações do perfume barato que é habitual nas nossas barbearias.

O senhor Fernando não bebia, não fumava, não comia carne embeirada, que – dizia ele – fazia mal, não frequentava cafés e casas de bilhares, apesar de a sua barbearia ser paredes-meias com o Excelsior do senhor Armandinho, não se deitava tarde, não ia às sessões de coboiadas do Teatro Avenida, nunca se casara ou sequer tinha tido namorada, e dizia-se que era virgem. Neste particular não podemos ter a certeza, mas os amigos e a população da pequena terra de província eram unânimes na afirmação: o senhor Fernando não fodia e nunca fodera.

Um dia fez sessenta anos. Os seus amigos e clientes mais íntimos – eram poucos, mas eram gente persistente – convenceram-no, sabe-se lá com que artes maléficas, a ir festejar. Levaram-no a jantar a Amarante, ao Zé da Calçada. Comeu de tudo. Depois levaram-no a um bar escuso no Alto da Lixa, onde terá bebido uísque pela primeira vez. Um, dois copos, um terceiro copo já passava das duas da manhã. E depois, em Penafiel, a uma casa de meninas.

No dia seguinte, uma segunda-feira, o senhor Fernando não abriu a barbearia. Foram a casa ver o que tinha acontecido. Arrombaram a porta da rua, subiram as escadas de aflição, abriram a porta do quarto de dormir. Fernando estava morto. – “Com um sorriso nos lábios?”, perguntou-se pela cidade nos dias seguintes. – “Claro,” respondia-se. “Como não?" Com o único que se lhe vira na cara em todos os anos de vida pública.

Sobre o sorriso, não posso garantir. Parece-me coisa arranjada, como cereja cristalizada que se põe no topo de um bolo de arroz à míngua de doçaria. Mas que foi embora consolado, que partiu à andalusa, isso é indesmentível. E transbordante de saúde. 

José Costa Pinto