SOBREVIVÊNCIA E PREPARAÇÃO XXXIII

SOVREV1

 

Finalizando a história de experiência campestre de há uns anos atrás.

Sem as prometidas formações, mantive-me a ler a cópia do livro. Apenas o meu amigo me fazia companhia, mas quase sempre em silêncio. A chuva caía e não dava sinais de querer parar ou até abrandar. Quente, abrigado e alimentado, não me importei com nada mais.
A hora do almoço chegou e começamos a cozinhar. Desta vez seriam umas batatas assadas em folha de alumínio e carne. Sabia bem o cheirinho da carne a crispar nas brasas da fogueira.

O meu grupo parecia agora bem mais bem-disposto. Conversavam e riam e em momento algum se falara do que se tinha passado durante a noite. Na realidade, pareceu-me que apenas queriam voltar a casa, tomar banho e descansar de forma mais tranquila.

Sei que em campo não somos as mesmas pessoas e, dependendo do que se aprende ao longo dos anos, é mais fácil sentir-mo-nos mais confortáveis dentro de uma construção de alvenaria, do que numa tenda no meio do mato. Existem outras condições que não temos por fora. Segurança, privacidade, higiene, etc…

A meio da nossa refeição, um dos organizadores decidiu visitar-nos. Mostrou-se surpreendido com a forma do acampamento que tínhamos feito, os bancos, a localização da fogueira e até o refletor de calor da mesma. No final, comunicou-nos que havia intenção de sairmos do local antes das 15h e voltarmos à civilização. Notei largos sorrisos na cara dos meus amigos.

Tranquilamente, acabamos de comer. A mensagem parecia tê-los acordado, pois falavam com mais energia, mais convicção. Assim que acabaram a refeição, começaram a arrumar os seus bens, encostando as mochilas à árvore. Apenas eu mantive a tenda erguida.

Pouco antes da hora marcada, comecei a arrumar os meus pertences. Enquanto encostava a mochila à árvore, os outros, colocavam as suas às costas, vestiam os ponchos e juntavam-se ao grupo principal. À espera de ver o grupo a sair, mantive-me tranquilamente sentado na cadeira de bushcraft e continuei a ler a cópia do livro. Afinal ainda tinha a cobertura superior colocada.

Já passava das 16h quando escutei um dos organizadores a dar ordem de partida. Sem pressas, baixei a cobertura, desarmei a cadeira e arrecadei o material em uso. Preparado, juntei-me aos restantes.

A chuva era constante, embora mais moderada. O pessoal continuava a queixar-se e alguns protestavam contra os organizadores. Desta vez, iríamos por outro caminho que dava direto a uma estrada alcatroada e assim seguimos até chegar junto da camioneta.

Durante todo o percurso, não falei uma única palavra. Não me sentia cansado, estava alimentado e quente e não tinha qualquer queixa a fazer por causa do tempo e como não tinha os meus amigos por perto, não senti a necessidade de falar.

Junto do transporte, agora surgia outro grupo de problemas. As portas de carga estavam abertas e os primeiros a chegar carregaram de forma arbitrária as suas mochilas nesta área. Como chegara com os últimos, tive a oportunidade de mais uma vez observar a confusão.

Agora, levavam os ponchos para dentro da viatura. Uns tiravam-nos à porta, sacudindo-os e outros iam com eles para dentro, molhando tudo. Dei a volta à viatura, desapertei a parka da mochila, coloquei-a por entre os suspensórios que seguravam as calças de chuva e poisei a mochila no porão de carga.

Sendo um dos últimos a entrar, tirei o poncho, sacudi-o e arrecadei-o num saco para não molhar o resto do equipamento que trazia na bolsa. Seguidamente, vesti a parka para manter a minha temperatura, pois apesar de vir com uma T-shirt por baixo do poncho, a caminhada tinha-me aquecido acima do normal. A parka iria manter essa temperatura sem problemas. A viagem de regresso ia começar.

A motivação por causa do regresso estava no ar. Todos falavam alto e bom som até a organização os interromper e falar ao microfone. Queriam saber como se sentiam, que dificuldades ou benesses tinham passado e, acima de tudo, se achávamos que podíamos dar algum dinheiro como forma de valorizar a experiência. Foi o descalabro total.

Se antes não protestavam abertamente, agora faziam-no ruidosamente. A queixa geral era o tempo molhado, o facto de não terem ido à água tomar banho e fazer outras atividades. Fosse como fosse, ao fim de largos minutos, os ânimos foram acalmados. No final, a maioria deu dinheiro pela experiência.

Quando chegamos a Coimbra, ainda chovia, mas não era nada de especial e não foi preciso vestir o poncho. Despedi-me dos meus amigos e vim para casa. Abracei esposa e filho e, neste conforto, tomei um bom e saboroso banho. Estava em casa, confortável e descansado.

Apesar de ser conhecedor das dificuldades apresentadas pela natureza, e de saber como me defender da maioria dos problemas no exterior, nada melhor do que chegar a casa e usufruir dos confortos que a sociedade nos proporciona.

Para quem esteve em ambiente de guerra, sabe o que é querermos descansar física e mentalmente e não podermos, por ínfimas razões, e estas situações ensinam-nos a querer manter a paz e serenidade, a abraçarmos os valores sociais e humanos que podemos e devemos ter, sem exageros ou contradições. A nossa liberdade acaba onde começa a dos restantes, mas há que ter método, consciência e cooperação social.

José Ligeiro