BOA NOTÍCIA PARA O PATRIMÓNIO DE COIMBRA.

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A abóbada da Igreja de S. Bento regressa às origens, 87 anos após a demolição.

Templo da Alta de Coimbra foi destruído nos primeiros anos do Estado Novo, mas algumas das pedras mais trabalhadas foram empilhadas e encostadas na escola José Falcão durante décadas. Agora estão a ser transportas para o Jardim Botânico da universidade onde serão estudadas.

Camilo Soldado e Adriano Miranda (Fotografia) 4 de Fevereiro de 2019,

“A igreja de S. Bento já principiou a ser demolida”, anunciava o jornal conimbricense O Despertar, na primeira página, a 6 de Janeiro de 1932, indicando que os trabalhos tinham começado dois dias antes. A publicação fundada em 1917, e que continua a ir para as bancas, dava assim conta de início do desmantelamento de um templo instalado na Alta de Coimbra desde o século XVII, encostada ao Colégio de S. Bento que ainda hoje se mantém de pé.

À data da sua demolição, a igreja dessacralizada desde 1834, aquando a extinção das ordens religiosas, tinha passado quase um século em processo de degradação. No dia seguinte, a extinta Gazeta de Coimbra dava conta disso mesmo: “esse templo, que estava abandonado há muito tempo, vai desaparecer de Coimbra, dando uma melhor exposição do Liceu José Falcão, e talvez à abertura duma estrada que ligue o bairro Sousa Pinto com a estrada da Beira”. O texto prosseguia, informando que o zimbório - “um arrojo de arquitectura” - estava já quase demolido e que o mesmo sucedia com a abóbada, que estava também “a ser apeada”.

Não há um registo preciso do movimento das pedras que sobraram da igreja. A Gazeta de Coimbra estimava na altura: “o material que sai desta igreja deve valer muitas centenas de contos”. O facto é que as peças trabalhadas que revestiam a abóbada da capela-mor ficaram à guarda do Liceu José Falcão, então instalado no Colégio de S. Bento. Com a construção de um novo edifício em Celas para alojar o liceu, a 15 minutos a pé dali, mais de duas centenas pedras fizeram a mesma viagem. O espólio ficou depositado até ao final de 2018 na Escola Secundária José Falcão, empilhado e confinado entre quatro paredes, mas a céu aberto.

Numa operação que junta a Universidade de Coimbra (UC), a Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares e a Direcção Regional da Cultura do Centro (DRCC), as pedras da abóbada da igreja estão a ser transportadas para o Jardim Botânico da UC, perto do seu local de origem, para serem estudadas.

Lurdes Craveiro acompanhou o processo desde o início. Numa área restrita da mata do Jardim Botânico da UC, para onde a maioria das pedras em calcário de Ançã já foi transportada, esta professora de História da Arte na Faculdade de Letras da UC, em conversa com o PÚBLICO, vai caracterizando as figuras e descodificando o discurso esculpido em cada uma das peças – pelo menos aquelas que já é possível identificar com uma certa margem de certeza. “Pela primeira vez, desde há mais de 80 anos, vemos as pedras que revestiam a abóbada da capela-mor da igreja”, assinala. “Agora é a oportunidade de relançar a discussão sobre a Igreja de S. Bento, com a oportunidade de ver [as pedras] ao vivo e a cores”.

A igreja foi consagrada em 1634, o que significa que ficou então em condições de acolher cerimónias. Em termos de organização de espaço, à nave única e transepto juntavam-se seis capelas laterais e uma capela-mor, com uma cúpula sobre o cruzeiro. O templo inseria-se numa “cultura do humanismo renascentista ainda activa em Coimbra nestes anos tardios das primeiras décadas do século XVII”, explica Lurdes Craveiro. A historiadora fala de um “sentido estético e decorativo de Coimbra” que se afasta da generalidade do país na mesma época, pautando-se por um “decorativismo muito intenso” nas pedras que foram guardadas. Nelas identifica-se a herança de João de Ruão, escultor de origem francesa que morreu em 1580, mas que “treinou aqui uma geração de canteiros e artífices para trabalhar o ornamento”

O colégio e igreja anexa integravam a Ordem de S. Bento, extinta, tal como as restantes ordens religiosas, em 1834. Pelo meio, em 1772, os frades beneditinos doaram parte dos terrenos da cerca do colégio para a instalação do Jardim Botânico da UC. Depois de albergar um quartel militar, o complexo de S. Bento recebe, em 1870, o liceu. “Há relatos na imprensa de que a igreja serviu como ginásio e salão”, diz Lurdes Craveiro, que acrescenta que os professores “foram tendo alguma atenção à preservação”. No entanto, sem intervenções de conservação, o edifício foi-se deteriorando.

Perdeu-se o rasto a muito do material que estava dentro da igreja. Os paramentos e alfaias litúrgicas foram sendo substituídos e não se sabe o que teria chegado a 1834. “Mas sabemos, e os jornais denunciam, que muita coisa foi roubada e desviada”, recorda a académica. No entanto, nem tudo se perdeu: por exemplo, os lampadários que estão na Sé Nova, também na Alta da cidade, eram de S. Bento.

À chegada da década de 1920, o edifício estava já degradado, apesar de ter sido classificado como imóvel de interesse público em 1928. Mesmo antes da demolição, em 1932, “já faltavam paredes”, descreve a historiadora. Primeiro foi desclassificada, “depois desapareceu, quando apresentava já perigo de queda e depois de muitas polémicas no âmbito da decisão”. Deu lugar a uma rua, a do Arco da Traição, que actualmente passa pelas traseiras do edifício das Matemáticas da Universidade de Coimbra.

Daí que as pedras da abóbada não possam regressar exactamente ao local onde se erguia a igreja, mas sim à mata do Jardim Botânico, cujos gabinetes estão alojados no Colégio de S. Bento. Apesar de o espaço onde foram depositadas as pedras estar vedado a visitantes, quem fizer o caminho pedonal entre a Alta e Baixa da cidade através do Botânico consegue aperceber-se da novidade das pedras à margem de uma parte do percurso. A maioria do conjunto são cartelas, painéis de calcário trabalhados com motivos ornamentais ou figurativos, entre as quais se identificam S. Bento, S. Bernardo ou S. Jerónimo, bem como profetas, padres da igreja, anjos e arcanjos, vai apontando Lurdes Craveiro.

O destino encontrado foi o Jardim Botânico da Universidade de Coimbra. O director, António Gouveia, conta que o processo começou há cerca de um ano, com o JBUC a ser contactado para receber as pedras, “visto que havia esta ligação histórica entre o jardim e estas peças”. “Era uma espécie de regresso à Alta de um património que tinha saído daqui”, acrescenta.

In Pedro Dias, referindo

(Jornal Público. Camilo Soldado e Adriano Miranda (Fotografia) 4 de Fevereiro de 2019).

Fotos: Professor Doutor Pedro Dias