CAMÕES DEPOIS DO NAUFRÁGIO”, DE ANTÓNIO FERNANDES DE SÁ,

Camoes.png 

SALVO PELO DOUTOR MÁRIO SILVA

Terá sido por sugestão do próprio Rei D. Carlos que, em 1902, o General EDUARDO ERNESTO DE CASTELBRANCO, primeiro Diretor do Museu de Artilharia (hoje, Museu Militar), encomendou a ANTÓNIO FERNANDES DE SÁ (Avintes, 7/11/1874 – 26/11/1959) uma estátua de Camões, destinada a esse Museu.

A estátua devia obedecer a duas condições: ser de mármore e ter 2,20m de altura. Fernandes de Sá apresentou duas maquetes ao Diretor do Museu, que escolheu a que “representava o épico no momento em que salvava a vida no naufrágio na costa do Camboja e, com ela, a sua espada de soldado e o poema imorredouro escrito no exílio de Macau: «os Cantos que molhados / Vêm do naufrágio triste e miserando, / Dos procelosos baixos escapados» [Canto X, estrofe 128]”, ideia que lhe teria sido sugerida pela leitura de “Camões e o sentimento nacional”, de TEÓFILO BRAGA.

A obra é exposta pela primeira vez, em 1904, no atelier do artista, na Rua Álvares Cabral, no Porto, donde vem para Lisboa, nesse mesmo ano, destinada a ocupar o lugar central da “Sala Camões” do Museu de Artilharia, rodeada das quatro telas de COLUMBANO BORDALO PINHEIRO (1857-1929) inspiradas em passagens de “Os Lusíadas”: “Drama de Inês de Castro”, “O Velho do Restelo”, “O Concílio dos Deuses” e “Vénus em auxílio dos navegadores portugueses”.

A estátua é elogiada por ANTÓNIO ARROYO (“O Século”, 12 de Junho de 1904) e pela revista “O OCIDENTE” (20 de Julho de 1904), em textos reproduzidos em anexo,

ANTÓNIO DE LEMOS (1864-1931), em “Notas d’Arte”, Porto, 1906, p. 34, escreve:

“«Camões», estátua em mármore de Carrara, destinada ao Museu de Artilharia de Lisboa, Após o naufrágio, o grande épico português salva, num heróico esforço, a sua espada e o seu poema – eis o assunto representado por esta bela estátua. Numa atitude de desesperada ânsia, o corpo fidalgo de Camões, sobre uma rocha, a mão direita crispada agarrando-se a uma saliência da penedia, na esquerda a espada e o poema sobre o coração, parece escorregar, resvalando na voragem da onda, que num desespero revoltoso se quebra de encontro àquela mole de mármore. Sublime de concepção. Na figura elegante e adelgaçada de Camões há linhas de uma senhoril fidalguia.

Tratado aquele mármore com o encanto e o amor de um verdadeiro português, o escultor não perdeu uma minudência, por mais pequena que fosse. Tudo estudado com perfeita segurança, com verdadeira mestria, desde a musculatura retesa e vigorosa de um desesperado em luta com o mar, até ao desalinho da roupagem, tudo ele viu, tudo ele estudou conscientemente. E fugindo da vulgaridade das concepções sobre este tema. Fernandes de Sá realizou – segundo o nosso modo de ver – uma obra genial.”

E FRANCISCO BRAGA (“Os artistas portugueses – António Fernandes de Sá”, em “Portugal Artístico”, de 15 de Agosto de 1904) assinala: “Em verdade, nada mais impressivo e real do que essa expressão, misto de ansiedade e triunfo, que se estampa na fisionomia do poeta e lhe contrai os músculos, nada mais augusto do que estas vestes esfarrapadas, coladas à pele, deixando ver através dos rasgões o corpo que encerrava a grande alma daquele que ainda hoje é a alma da Pátria. Crispam-se-lhe os dedos na rocha salvadora e a mão esquerda, sustentando a espada e os «Lusíadas», a síntese da sua obra, parece comprimir no peito as pulsações violentas do coração. A largura com que o artista executou a sua obra, o estudo aturado que fez de todas as particularidades, desde a vaga impotente que se lhe revolve aos pés até aos cabelos empastados pela imersão nas águas do mar da China, tudo fez com que esta obra seja das mais notáveis produções da estatuária moderna em Portugal.”

Porém, falecido, em 24 de Fevereiro de 1905, o promotor da obra, General Castelbranco, Diretor do Museu de Artilharia, começaram os estetas alfacinhas a ridicularizar a estátua do “escultor de Avintes”, secundados pelos militares, que reputavam a imagem do Camões pouco épica, demasiado trágica e derrotista, indigna de figurar num museu de celebração das vitórias castrenses.

Daí que, em 1914, a nova direção do Museu resolveu retirar a estátua da “Sala Camões”, escondê-la numa arrecadação e pô-la em almoeda ao público da capital. A indignação de algumas vozes, de que se fez eco a revista “O OCIDENTE”, de 10 de Agosto desse ano, levou a que Mestre ANTÓNIO AUGUSTO GONÇALVES, primeiro Diretor do Museu Machado de Castro, criado em 1911, aproveitasse a oportunidade e conseguisse que, em 1924, o Ministro da Guerra, Major Américo Olavo [Américo Olavo Correia de Azevedo (1882-1927), herói da I Guerra Mundial, morto em 8 de Fevereiro de 1927 na primeira revolta contra a Ditadura Militar], determinasse que a estátua fosse para Coimbra, onde foi colocada sobre um pedestal, no patamar exterior do Museu, assente nos primeiros degraus da escadaria que dá acesso à Igreja de S. João de Almedina.

Mas também os coimbrinhas não terão gostado da estátua, criticando a sua exposição no Museu Machado de Castro com o argumento de ter sido rejeitada por indigna de figurar no Museu de Artilharia. Como recordaria ALBERTINO MARQUES (“O Despertar”, de 20 de Novembro de 1957): “não tardou, porém, que os grandes críticos de arte viessem logo publicamente protestar contra esta resolução daquele autorizado Mestre, e não tardou também – pasmem senhores! – que miseráveis, aproveitando a escuridão da noite, irem lambuzar a citada estátua com excremento humano!”

Surpreendido e profundamente magoado, ANTÓNIO AUGUSTO GONÇALVES fez publicar no jornal coimbrão “A DEFESA”, de 5 de Setembro de 1924, veemente artigo em defesa da obra, salientando a sua originalidade contra a estafada imagem do “Camões de coroa de louros, vestido com farda de gala, olhando à direita, empunhando a pena ou a espada e cingindo ao peito um livro de meia encadernação”.

O falecimento de Mestre Gonçalves em 1932 foi aproveitado pelos adversários do “Camões depois do naufrágio” para o retirarem do patamar exterior e o esconderem no vão por baixo das escadas de acesso ao 1.º andar da galeria do Museu Machado de Castro.

Mas nem aí escondida a estátua teve sossego. A destruição da Velha Alta iniciada em meados da década de 1940 não era compatível com um Camões esfarrapado. A imagem estadonovista de Camões era a da clássica estátua colossal, com 4,5 metros de altura, encomendada a Álvaro de Brée (autor da estátua da Rainha Santa Isabel no largo do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova), que esteve para ser erguida na parede lateral do pórtico projetado para ligar as Faculdades de Medicina e de Ciências e marcar a separação entre a Praça D. Dinis e a Rua Larga.

O Estado cedeu a propriedade da estátua à Câmara Municipal de Coimbra, que a colocou num local discreto do Parque da Cidade.

Em 1957, com o pretexto falso de aí a estátua estar a sofrer degradação, a Câmara decidiu retirá-la, o que suscitou forte polémica, com artigos de DIOGO DE MACEDO e de ALBERTINO MARQUES a defenderem o seu valor estético, e uma persistente campanha de NICOLAU DA FONSECA, nas páginas de “O Despertar”, a questionar as razões da retirada da estátua e o destino que lhe estaria reservado.

Uma oficiosa nota no “Correio de Coimbra” revelou que não era o risco de degradação o real motivo da retirada da estátua. A razão era outra: não era “a estátua ideal de Camões que Coimbra merece (…) O artista representa Camões salvando «Os Lusíadas», mas chegando à praia extenuado, Não é o triunfo que ali se exalta; é o cansaço. Como expressão deste, está fiel; PARA LIÇÃO DA MOCIDADE, É DERROTISTA.”

Recolhida durante anos num armazém municipal, depois depositada “por misericórdia” numa arrecadação do Museu Machado de Castro, deve-se ao Doutor MÁRIO SILVA a proposta que permitiu ao “Camões depois do naufrágio” voltar a aquecer-se à luz do sol.

Quando preparava a instalação do Museu Nacional da Ciência e da Técnica, escreveu, em 22 de Dezembro de 1972, ao Presidente da Câmara Municipal de Coimbra, Eng. Araújo Vieira, solicitando a colocação no jardim do palacete Sacadura Botte, escolhido para sede do novo Museu, dessa malfadada estátua, argumentando ser a estátua de uma eminente figura nacional, de projeção universal, que revelou profundos conhecimentos científicos, em particular no domínio da Astronomia, em muitas das suas obras, e que em Coimbra terá vivido aí perto, em casas da sua família materna, na zona correspondente à atual Rua do Colégio Novo, contígua à Rua dos Coutinhos, onde se situava a sede do MNCT.

A Câmara respondeu que “sim, mas também”: a Câmara deliberou “ceder, a título precário, àquele Museu a estátua de Camões, desde que se verifique que a mesma não pode ser colocada nos locais já anteriormente aceites” (ofício de 30 de janeiro de 1973). Decorrido ano e meio sem decisão camarária, o Doutor Mário Silva voltou ao assunto no ofício 57/74. A questão foi apreciada na sessão da Câmara de 19 de abril de 1974, e de novo a deliberação foi de procrastrinar o assunto. Em ofício datado de 26 de abril de 1974, possivelmente um dos últimos que assinou, o Presidente da Câmara comunica ao Doutor Mário Silva que a Câmara deliberou “conceder todas as facilidades E ESTUDAR O ASSUNTO” (troca de correspondência transcrita em Cruz Diniz, “António Fernandes de Sá e a sua estátua «Camões após o naufrágio»”, edição do Museu Nacional da Ciência e da Técnica).

Não chegaram a ter tempo para estudar o assunto: na véspera ocorrera o 25 de Abril e uma das primeiras decisões da nova Câmara, presidida por Rui Carrington da Costa, foi ceder o “Camões depois do naufrágio” ao Museu fundado pelo Doutor Mário Silva.

Lá a fui encontrar, infelizmente pouco visível pelo público, mas em perfeito estado de conservação (o que confirma a falsidade do argumento, usado para a retirarem do Parque da Cidade, do risco de degradação se sujeita às chuvas e intempéries), e felizmente a salvo da onda de barbárie que, nos últimos tempos, na Alta, perante a complacência das autoridades municipais e universitárias, tem vandalizado monumentos históricos, sem respeitar a Igreja de S. Salvador e a Sé Velha. 

Mário Torres