COIMBRA DESTRUÍDA: O COLÉGIO DE TOMAR

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 A decisão dos responsáveis da “Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo” (vulgarmente chamados “de Tomar”, por nessa cidade terem a sua casa-mãe), de criar um Colégio em Coimbra terá sido tomada em 1555, sob o impulso de D. João III, no âmbito da reforma da Ordem, que, face à perda de relevância quer da sua original vocação militar, quer da posterior participação na saga dos Descobrimentos, aconselhava uma reorientação para a área dos estudos superiores.

 

Em Agosto de 1556 chegaram a Coimbra os primeiros membros da Ordem, para cursarem estudos superiores, instalando-se provisoriamente nas casas onde funcionava o Colégio de S. Jerónimo, próximo do Castelo. Frustrada, por oposição dos jesuítas, a tentativa de os instalar no vizinho Colégio de Jesus, foi decidido, já em 1560, construir de raiz o novo Colégio nuns cerrados, que eram considerados fora da cidade, no lugar conhecido por Eira das Patas, entre a extremidade da cerca de Santa Cruz e o futuro Convento de Santa Ana (também demolido, embora não totalmente, para instalação de um quartel militar: o Regimento de Infantaria 12), junto à estrada que seguia para Celas.

 

A 6 de Maio de 1566, principiaram a abrir-se os alicerces para o novo grande edifício, e no subsequente dia 9 foram solenemente postas as primeiras pedras, “e os freires vieram para ali, albergando-se provisoriamente numas casas que lá havia, e depois sucessivamente iam aproveitando as partes do novo edifício que se construíam” (António de Vasconcelos).

 

As obras prosseguiam lentamente, mas com grandeza, só sendo concluídas decorridos quase 147 anos. Como refere António de Vasconcelos, “na tarde da sexta-feira depois do 2.º Domingo da Quaresma, 17 de março de 1713, em presença do Dom Prior Geral da Ordem de Cristo, o Dr. Frei Urbano de Mesquita, e do Prior deste Colégio, o Dr. Frei António Chichorro, veio o Bispo-Conde D. António de Vasconcelos e Sousa, e benzeu a majestosa igreja, trasladando em seguida o Santíssimo Sacramento para ali da capela da igreja provisória. No dia seguinte, sábado, em que ocorria a festa do Arcanjo S. Gabriel, o mesmo Bispo, com os dignidades e cónegos da sua Sé, celebrou, em toda a pompa pontifical, a Missa votiva da Conceição de Nossa Senhora, titular da nova igreja, sendo todo este dia de grande festa, à qual assistiram o Reitor da Universidade D. Gaspar Moscoso da Silva com todos os lentes e doutores daquele estabelecimento.”

 

Segundo Augusto Mendes Simões de Castro, “encontra-se ao lado da bela estrada que conduz a Celas este excelente edifício, que por sua magnificência e belezas bem correspondia ao esplendor da famosa Ordem de Cristo, a que pertenceu. (…) Era edifício sumptuoso e de grandes proporções, e a igreja, de magnifica arquitetura, uma das mais belas e perfeitas de Coimbra.”

 

Na descrição de António de Vasconcelos, “O templo colegial era de uma única nave, e visto do exterior impunha-se desde logo pela nobreza da sua fachada, ladeada por duas torres. Tinha transepto, que, por não exceder a largura da nave, não aparece na planta; mas destacava bem nitidamente nos alçados do edifício. Entre a nave e a capela-mor, erguia-se o zimbório, externamente revestido de brilhantes azulejos. Deste partiam os dois braços do transepto, cujos topos rematavam por empenas e davam ao edifício forma crucial bem sensível e caraterística. A capela-mor, que em face da planta parece ter sido desproporcionadamente comprida, de facto não o era: abrangia apenas dois terços daquela aparente extensão, pois o terço posterior era ocupado pela sacristia.”

 

“O novo instituto tomarense assumiu a denominação de «Nossa Senhora da Conceição», titular do oratório ou igreja colegial.”

 

“Já de há muito que este Colégio havia sido oficialmente incorporado na Universidade, por carta régia de 6 de julho de 1563.

Era à igreja dele que a Universidade vinha todos os anos, a 8 de dezembro, em cortejo solene, celebrar a festa de Nossa Senhora da Conceição; e ao ofertório da Missa subia o Reitor ao supedâneo do altar, onde de joelhos depunha nas mãos do celebrante a oblação da Universidade, que consistia em um cruzado para o Colégio, e 3$000 réis, as velas e o incenso para a Missa, em cumprimento dum legado do Rei D. Manuel.”

 

Com a extinção das ordens religiosas em 1834 e o abandono a que o imponente conjunto foi votado, sobreveio a sua chocante ruína. Referia Simões de Castro, em 1867: “É porém bastante lastimoso o estado de ruína a que está hoje reduzida tão soberba fábrica, proveniente do abandono em que jazeu depois da extinção das ordens religiosas, e do pouco caso que do edifício tem feito o seu novo possuidor (…). Foram imensos os estragos que sofreu o Colégio de Tomar depois de 1834. Esteve exposto a um contínuo saque, roubando-se ferro, azulejos, madeiras, cantarias … em fim tudo o que de lá se pôde tirar. Não contentes os governos com ter deixado em tanto abandono este valioso edifício, foi autorizada a venda dele e da cerca contígua, por alvará de 19 de janeiro de 1852, segundo a avaliação de dois contos de réis (!) E efetivamente o colégio e a extensa cerca de Tomar foram vendidos em 1 de abril de 1852 por 2520$500 (!) A troco de tão diminuta quantia ficou a nação privada de um excelente prédio, que tanto se prestava a aplicações e serviços da verdadeira utilidade pública (…). Despovoado e sem resguardo vai pouco a pouco desfazendo-se em ruínas. Aos cânticos que outrora ressoavam pelo templo sucedeu um silêncio sepulcral, interrompido apenas pelo zunido dos ventos ou pelo arrulho das pombas que a ele se acoitaram!”

 

Versão confirmada por António Cândido Borges de Figueiredo, em 1886: “A igreja era muito ampla, e a sua estrutura magnífica. Depois da extinção dos conventos praticaram-se nela, como no Colégio, as maiores delapidações e vandalismos; roubaram-lhe os belos azulejos que revestiam suas paredes, as cantarias, os gradeamentos de ferro, e até as madeiras. Cedido ao município, com a cerca, para ali estabelecer o cemitério, como não tivesse esta aplicação foi o Colégio em 1852 vendido por uma diminuta quantia a um particular, voltando passados vinte e um anos à posse do município. Na igreja fundaram alguns estudantes, em 1873, uma escola de tiro, de esgrima e ginástica; o alvo estava no altar-mor.”

 

Bem se compreende o lamento de Eugénio de Castro, em 1916: “O Colégio de Tomar, da Ordem de Cristo, fundação de D. João III, foi vendido, como costuma dizer-se, pelo cabo de uma navalha velha, em 1852, e finalmente demolido para aí se edificar a Penitenciária, construção tão sinistra pelo fim a que se destina como antipática pela fria brutalidade do seu aspeto.”

 

Voltando à minuciosa descrição de António de Vasconcelos: “Por carta de lei de 15 de setembro de 1841, foi cedida à Câmara parte da cerca do Colégio, para nela construir o cemitério municipal, pois então ainda na cidade de Coimbra não havia cemitério: continuavam a fazer-se os enterros nas igrejas e capelas. Uma comissão de peritos vistoriou o local a 30 de Setembro de 1843, e declarou a área de terreno doada insuficiente para o efeito. Novas diligências fez a Câmara, que tiveram como resultado ser-lhe concedido o resto do prédio, por portaria do Ministério do Reino de 15 de abril de 1848. Agora os peritos levantaram dúvidas sobre a colocação ali do cemitério.por julgarem o lugar impróprio, com justificadíssimas razões. À vista disto o Governador Civil, a 12 de agosto de 1851, nomeou outra comissão de peritos, para estudarem o assunto e escolherem local mais apropriado. Foi escolhido terreno na extremidade ocidental da quinta da Conchada, a N.-O. de Coimbra. Nova comissão nomeou o Governador Civil para ir demarcar o terreno, o que ela fez a 25 do mesmo agosto, começando logo as obras.

Lutava-se com grande penúria de meios para ocorrer às importantes obras de construção de grandes muros de suporte e terraplanagem; para obviar a tais necessidades, foi autorizada, por portaria de 19 de janeiro de 1852, a venda em hasta pública do edifício de Tomar e sua cerca, devendo o produto da venda ser aplicado integralmente às obras do cemitério. Assim foram o edifício e a cerca vendidos em praça a Frutuoso José da Silva, no dia 1 de abril de 1852, pela ridícula quantia de 2520$500 réis.

Em 1873 voltaram estes prédios à posse do município, e então alguns estudantes fundaram na igreja uma escola de tiro, esgrima e ginástica, colocando-se o alvo para os tiros no altar-mor! Neste estado, e com tal uso, conheci eu o grandioso templo, havia muito profanado.

Pensou-se então na construção duma cadeia distrital, e a Câmara, em sessão de 4 de outubro de 1873, indicou para tal efeito o edifício do Colégio de Tomar, que com este destino foi entregue à Junta Distrital.

Mais tarde passou para a posse do Governo, que o fez demolir integralmente, e construir no seu lugar a Penitenciária, que ali funciona desde os fins do século passado.”

 

Do imponente Colégio de Tomar apenas restam, recolhidos no Museu Machado de Castro, o globo rematado pela cruz de Cristo, tudo de cantaria, que terminava o frontão da fachada da igreja, e umas grimpas de ferro com a mesma cruz da Ordem, que se erguiam sobre as torres.

 

E – acrescento eu – o nome da Rua de Tomar, assim designada por ficar adjacente ao Colégio do mesmo nome, e que, em tempo de aulas, diariamente percorri, de 1955 a 1962, no caminho de minha casa (à Couraça de Lisboa) para o Liceu D. João III, na mais completa ignorância que do outro lado da fieira de casas (entre elas aquela onde viveu o nosso Nobel da Medicina, Prof. Egas Moniz, e junto das quais se realizou, em 1905, no decurso dos festejos do "Enterro do Grau", o "banquete das repúblicas confederadas"), por trás do frio muro da Penitenciária, existiu tão deslumbrante edifício.

 

Fontes:

 

Augusto Mendes Simões de Castro, “Guia histórico do viajante em Coimbra e arredores…”, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1867, pp. 128/129.

António Cândido Borges de Figueiredo, “Coimbra Antiga e Moderna”, Livraria Ferreira, Lisboa, sem data [1886], pp. 324-325.

Eugénio de Castro, “Guia de Coimbra”, “publicação oficial da Sociedade de Defesa e Propaganda de Coimbra”, F. França Amado Editor, Coimbra, sem data [1916], pp. 8-9.

António de Vasconcelos, “Os Colégios universitários de Coimbra: XIV – Colégio de Nossa Senhora da Conceição ou de Tomar”, em “Escritos Vários relativos à Universidade Dionisiana”, I vol., 1938, reeditado pelo Arquivo da Universidade de Coimbra em 1987, pp. 248-255

Imagem retirada da Cerca de Coimbra

Mário Torres