«Gravo, logo existo»

 

Mais uma página de diário de Octávio Sérgio (07.01.2021) escrita em tom ameno, nem por isso menos lúcido quanto ao (i)mediatismo fonográfico e a um certo deslumbramento protagonizado por velhas glóricas e celebridades em lantejoulas. 

 

Bloco de Notas 25

 

“Gravo, logo existo”.

Frase proferida por Armando Luís de Carvalho Homem a propósito de gravações musicais que por aí aparecem sem o mínimo de qualidade. Gravam para mostrar que existem! É, sem sombra de dúvida, uma frase de significado bem profundo. Quem não grava, não existe. É uma verdade mais que comprovada.  Quantos cantores e guitarristas são badalados só porque gravaram qualquer coisa, mesmo sem grande significado. Quem não gravou terá sorte se alguém se recordar da sua existência pela terra e o proclamar em escritos ou conversas de café.

Vejamos o que aconteceu comigo na década de sessenta:

Raramente o meu nome aparece em escritos sobre essa época e, se aparece, é bastante esbatido. No entanto tive uma existência bastante conturbada.

A Guitarra fez parte da minha formação académica, tal como as Físicas e as Químicas. Vejamos:

Do meu primeiro grupo em Coimbra, fazia parte o David Leandro (g), Jorge Gomes (v) e Manuel Dourado (v). Actuámos com o Orfeon Misto em espetáculos fora de Coimbra, nomeadamente em Setúbal, do qual tenho uma foto (1962), na qual se vê o cantor Gomes Alves. Actuámos também em espectáculos fora do Coro Misto. Lembro-me que o primeiro foi no Rossio ao Sul do Tejo, perto de Abrantes.

Outro grupo em que actuei com o Coro Misto era constituído por José Barrio (g), Rui Nazaré (v) e Horta da Silva (v). A cantar, Armando Marta e Barros Ferreira. Tenho foto de 1961.

Com o mesmo Coro Misto toquei com outro grupo, formado por Gabriel Ferreira (g) e Costa Reis (v). A cantar, António Bernardino e Joaquim Mota. Tenho fotos de 1964. Resumindo, eu era o guitarrista de serviço do Coro Misto desde que para lá entrei.

Com Gabriel Ferreira (g) e Costa Reis (v), fui a Viseu em Janeiro de 1964 numa homenagem a Augusto Hilário, pelo centenário do seu nascimento. Cantaram Mário Sacadura, Osvaldo Peliz e Joaquim Mota.

Acompanhei José Afonso numa digressão ao Algarve com o Coral das Letras. José Afonso ficou muito agradado comigo, já que mal ele sugeria o fado para cantar, logo eu lhe apresentava a introdução e o respectivo acompanhamento. Disse-me que os instrumentistas tinham sempre problemas para arranjar os acompanhamentos e os respectivos tons e eu sabia logo o que fazer. Na altura conhecia praticamente tudo, no respeitante ao Fado, daquela geração.

Fui barítono no Orfeon Académico com Raposo Marques na regência.

Com Eduardo Nazaré (g), Rui Nazaré (v), Barros Madeira e Sousa Pereira a cantar, fizemos uma serenata à porta de uma República, com Carlos Candal, na altura era Presidente da AAC, a assistir. Tenho uma foto.

Fui à televisão com António Portugal (g) e Rui Pato (v); Adriano Correia de Oliveira e António Bernardino a cantar. Tenho fotos e som em fita. Berna cantou “Fado do 5º Ano Médico de 1926“ (Vida que és o dia de hoje), “Samaritana” e “Fado do Alentejo” (Maria teu lindo nome). Adriano “Capa negra, rosa negra”, “Meu amor é marinheiro” e “Meu pensamento”.

Fui a um estúdio de gravação com António Portugal e Jorge Moutinho gravar um disco com António Bernardino a cantar. Tempos depois de feita a gravação, António Portugal achou que o som estava muito grilado e resolveu regravar mais tarde. Esse mais tarde já não me encontrou em Coimbra, pelo que foi Francisco Martins que a fez. Três dos fados desta gravação foram cantados na Televisão por António Bernardino como está referido no parágrafo anterior. O quarto foi o “Fado Rezende” (Ao morrer os olhos dizem).

Toquei uma peça minha para o Carlos Paredes e  Fernando Alvim, a pedido de António Portugal, após  um jantar que este ofereceu aos dois instrumentistas, em que eu também fui convidado, pois era presença assídua na sua casa, Depois de executada a peça, Carlos Paredes disse: “Não sabia que em Coimbra também se tocava assim”; e acrescentou, mais ou menos nestes termos: a sua guitarra abrange um leque entre Música Primitiva e Stravinsky.

Fui a uma sessão de arte na AAC tocar uma peça minha e o Lá m de Carlos Paredes acompanhado à viola por Rui Pato na peça de Carlos Paredes. Toquei a minha guitarrada a solo. Nunca encontrei ninguém disposto a debruçar-se sobre o meu trabalho.  Confesso que seria um trabalho árduo, daí as recusas. Tentei convencer o Rui Pato e o José Niza, mas em vão.

Actuei noutra tarde de arte na AAC com António Portugal, Rui Pato e António Bernardino. Tenho fotos. Eram tardes sempre de casa cheia, a abarrotar.

É altura de me referir às ditas guitarradas que produzi num curto espaço de tempo, apenas alguns meses, no ano de 1965. Foram perto de uma dezena. Era um estilo nada consentâneo com o que se fizera até aí. Há ainda testemunhos vivos que as apreciaram, como Jorge Gomes, António Ralha, Gomes Alves, José Miguel Baptista e Rui Pato. Um dia este disse-me que a minha música era estrambólica, mas pelo meio iam aparecendo frases de grande lirismo. Uma tarde nos jardins da AAC toquei algumas guitarradas minhas estando o Durval Moreirinha a ouvir. No final, com um ar excitado, este diz-me: “era disto que eu gostava de acompanhar!”. Não sei se por influência dele se não, passado um ano Jorge Tuna lança um disco “Um som diferente nas guitarras de Coimbra”.

Vou agora transcrever o que alguns cultores da música de Coimbra que comigo conviveram, disseram a meu respeito no livro intitulado “Canção de Coimbra – Testemunhos vivos”, livro saído em 2002, numa edição da responsabilidade do Pelouro da Cultura de Coimbra.

“Também nesta altura foi muito importante para mim o magistério do Octávio Sérgio Matos Azevedo, que era um estudioso experimentalista da guitarra. Os seus conhecimentos de música e o seu ouvido primoroso, permitiam-lhe reproduzir com um rigor impressionante o fraseado das variações mais complexas, que depois, generosamente ensinava. Com Octávio aprendi coisas novas, e tive oportunidade de reciclar ou corrigir muito do que supunha tocar bem.” – António Ralha.

“… do inigualável Octávio Sérgio (que deixou um rasto de luz bem visível no modo de tocar guitarra)” … - Fernando Gomes Alves

“Salientarei  o grande mestre da guitarra Octávio Sérgio” – Jorge Gomes.

“… Cultura e Expressão próprias, arautos de Obra diferente) Octávio Sérgio (felizmente, no caso de Octávio – ele que foi também o último e grande acompanhador do Zeca – tendo sua acção podido ser bem mais acabada/prolongada no tempo) … ambos exemplo do que, até então, em Coimbra não fora feito… à comparação, por exemplo, com grandes pintores/músicos pretéritos, Octávio/Eduardo foram/são para Coimbra/, face a outros pares, o que Picasso ou Miró, Bartok ou Stravinsky foram perante Rubens/Murillo, Mozart/Vivaldi … Eduardo vivo e actuante Sérgio, são ainda exemplos creio, para as gerações vindouras – e os da própria actualidade! … Inquebr(ant)áveis! Marcando suas Épocas são seguramente, com outros … Grandes entre os melhores!...” – José Miguel Baptista.

Há mais referências ao meu nome mas menos significativas, como no caso de Rui Pato e Manuel Borralho,

Concluindo: não existi na década de sessenta porque não gravei. Tive dois prejuízos – ter esquecido toda a obra composta ( e este foi o pior) e permanecer incógnito na maioria dos textos elaborados sobre esta época.

Ou seja; não gravo, logo não existo.

 

Guitarra de Coimbra V (Cithara Conimbrigensis)

 

               Elisio-de-Matos-Fado-das-Alminhas8269.jpg                                                                                                                                                                                                                                   Octávio Sérgio

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