Jogos de Coimbra

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" Meus ineptos coimbrinhas. Há 30 anos, por esta altura, andava tudo pela feira da ACIC, de mão dada com os paizinhos, à espera da oportunidade de fazer slide no cantinho das Forças Armadas, não era?! Claro que era, todos nós por lá andámos. O que hoje vamos aqui espraiar nem todos tiveram a oportunidade de vivenciar. Trata-se do maior evento desportivo, regular e de continuidade que a cidade alguma vez albergou. Falo, obviamente, dos Jogos de Coimbra. Os Jogo de Coimbra que regressaram recentemente num formato bem mais diminuto e sem o impacto que outrora teve na cidade. Tão somente um pequeno laivo da grandiosidade de outros tempos. Penso não estar enganado quando afirmo que foi a inteligência rara do executivo do sotôr Carlos Encarnação que findou com os jogos por decisão, na altura, de requalificar, reestruturar e melhorar o formato da competição. Sabemos bem o que acontece neste magnífico país, e em particular nesta encosta mondeguina, quando se suspende alguma coisa que não dá lucro no intuito de refazer a sua espinha dorsal. Normalmente partem-na. Antes de acelerar tema adentro e discorrer sobre a furta-cor de sensações que era a participação neste evento, vamos debruçar-nos sobre a sua grandeza. Não me recordo de todas as modalidades. Posso apenas aferir que neles participei em Andebol e Futsal (na altura Futebol de 5). Lembro-me que havia Judo, Badmington, Atletismo.  Depois, não tenho conhecimento, mas certamente que haveria as modalidades mais praticadas como Basquete, talvez futebol de 11. Não sei. Sei que naquelas onde participei mais activamente tudo isto era um acontecimento. Fixemo-nos somente no Futsal. Era obrigatório as equipas terem um mínimo de oito jogadores inscritos. Cada grupo com cinco a seis equipas, num total, habitualmente, a rondar os oito grupos. Contas por alto, e contabilizando todos os escalões, que creio serem quatro, participariam, apenas no futsal, cerca de 1000 habitantes desta honorífica cidade. Não será despiciente alegar que entre todas as modalidades, com toda a organização envolvente, equipas técnicas (que também as havia) e atletas, estariam mais de 2000 pessoas envolvidas na prática de desporto todos os fins-de-semana dispersos pelas várias valências da cidade e arredores. Não sei sequer se existia semelhante projecto, de tal envergadura, a nível nacional. Penso que também não será apenas obra do acaso que este incentivo à prática do desporto e modalidades amadoras (entretanto notoriamente perdida) coincida exactamente com o auge da prática sénior desportiva na cidade e de assistências recordes nos pavilhões e recintos. Andebol a lutar pelo título nacional da Primeira Divisão, Hóquei na Primeira Divisão, dois (?!) clubes de Futebol a actuar em campeonatos profissionais, Rugby com Taças, Supertaças e Taças Ibéricas (as últimas na sua história) e vários jogadores, das várias camadas, selecionados recorrentemente para representarem o país, Basquete, pelo menos, uma época na Primeira Divisão. Havia, verdadeiramente, uma cidade que respirava desporto, um pouco à imagem do que sucede agora em grande parte das cidades do norte do país. Regressemos aos antológicos Jogos de Coimbra. Os jogos realizavam-se invariavelmente aos sábados e domingos. Sexta-feira começava o nervosinho miudinho, a véspera do jogo, pensar no cinco inicial, quem jogaria onde, imaginar jogadas, adormecer com o som da bola e do chiar das sapatilhas, a imaginar jogadas que nunca ocorreriam. No dia do jogo era a festa logo pela manhã. As equipas, nas camadas mais jovens, não eram senão reflexo da nossa vivência diária no quarteirão.  Descíamos então estremunhados as escadas do prédio, encontrávamo-nos já cá fora e rumávamos ao Pavilhão de Todos os Sonhos, alegres, calcorreando as calçadas desta cidade. Uma vez no Pavilhão, o nervoso já não era mais miudinho, era do tamanho do mundo, fazia tremer as prateleiras dos balneários. O frio matinal. O aquecimento com passes e remates à baliza. Bem amador. Corpos tensos, a olhar de soslaio a outra metade do campo. Aquele gajo tem um bojardo do caralho. ‘Tamos fodidos! Bola ao centro, apito do árbitro e todo o nervoso misteriosamente desaparecia. Éramos nós outra vez. Gritaria, diferentes vozes de comando a ecoar no gélido e despejado pavilhão.  Golo marcado, festejos sóbrios, bater palma com palma. Bem jogado. Concentração. Golo sofrido. Cabeça em baixo. Alguém incentiva. Batem-se palmas de encorajamento para nós próprios. Apito final. Vitória. Sorrisos e coração cheio de quem acaba de ganhar o Campeonato do Mundo e imagina na sua cabeça o golo marcado, em câmara lenta, de forma muito mais poética do que realmente foi. Revienga à Futre, remate à Weah! Nada disso, foste apenas Paulito e Daniel. Prosa, não Poesia, mas não interessa. Se acaso a derrota nos acercasse, e mais se goleada (invariavelmente contra equipas da Pedrulha – mítico Montanelas), não relevávamos. Era apenas um jogo. Fazia-se um esboço dos erros no regresso a casa. Atribuíam-se culpas. Corrigiam-se erros. Ah, os Klopps dos 90’s. Jogar nos Jogos de Coimbra tinha ainda uma importantíssima vertente estética, tal era a importância que os jogos adquiriam para quem neles participava. Primeiramente a escolha dos nomes das equipas. Não pensem vocês que estes se decidiam de ânimo leve. Não, mil vezes não. Demorava por vezes semanas até se acertar num nome. Cada individualidade tinha o seu clube preferido, por isso a dificuldade inicial. AC de Celas, Dínamo dos Olivais. Inter de Coimbra. Tudo nomes muito criativos. Após a homologação da denominação desportiva, seguia-se o passo mais fixe de todos. Escolha do equipamento. Havia sempre alguém que tinha um primo/tio/padrinho com uma loja em que fazia impressões e bastava comprar as t-shirts e ele fazia uma cena fixe. Ou então, equipamentos à séria, ligeiramente mais caros, e aí teríamos de decidir o padrão a adoptar. As horas perdidas (seriam?) nisto. Espectáculo! Por último, e aqui variava de acordo com o nível de profissionalismo de cada equipa ou pela sorte de nos calhar em rifa um qualquer filho dum comerciante (para os Cerelacs que nos seguem, este era o nome pelo qual eram conhecidos os empreendedores na altura) que prontamente se voluntariava a arranjar um digno e vistoso patrocínio – que orgulho. Camisola com patrocínio, Leitaria dos Olivais! Até jogávamos o dobro. Também não era difícil, dobro de zero. Os Jogos de Coimbra tinham uma componente engraçada, ao contrário do vosso escriba, o Município entendia que Coimbra se estendia para além dos limites urbanos da metrópole e assim, muitas foram as vezes que nos deslocámos a tão bárbaras povoações como Geria, Pedrulha, Marco dos Pereiros, Eiras, São Martinho, Casais, Misarela, Sta. Clara para, quase invariavelmente, jogar naqueles ringues de cimento, escaldados pelo sol, a suar em bica e a dizer mal da vida pelos 11 a zero que íamos levar do Pedrulhense. Mas essa era também a beleza dos Jogos de Coimbra, prova cabal que os iletrados jogam melhor à bola. Na cidade propriamente dita havia três míticos campos – eu sei, jogava-se em múltiplos pavilhões pela cidade fora – mas estes três, cada um com a sua particularidade, emanavam uma aura distinta. Por ordem crescente de importância, iniciemos pelo já desaparecido e agora ocupado por um condomínio de luxo em plena fase de construção, Pavilhão da PT. Não sei explicar o que lhe dá o halo de lendário, penso que o seu desaparecimento para isso muito contribuiu. Mas o Pavilhão da PT era também um pavilhão decrétipo, despojado, frio, meio esconso, ali enfiado num ambiente que não lhe pertencia, por fora passava quase despercebido que existiria ali um pavilhão. Acrescendo ainda o facto de ser dos mais antigos de Coimbra na altura, e, acho, que o nome também o torna especial. Entramos aqui um pouco no campo da parapsicologia e na vaga da ininteligível emoção, mas eu acho que o próprio facto de se pronunciar Pavilhão da PT, aquela aliteração (porra, finalmente as aulas da Castanheira Neves de Português A serviram para alguma coisa) em P, a sigla quase homófona e o facto de ser uma empresa bandeira em Portugal, faz realmente soar bem mais do que ele ostentava. É isso! É como se tratasse dum Pavilhão onírico, imaginado, como Palácio de Cristal, Palácio do Gelo, Pavilhão da PT e um gajo imagina algo em grande, monumental, histórico. Acho que é isso. E claro, sem despiciendo, o facto de todos os anos (ou quase) haver pelo menos uma jogatana naquele local. Os dois outros que se seguem digladiam entre si o pódio do mais mítico campo dos Jogos de Coimbra. Um pelo inusitado da sua localização. O outro porque era o nosso Teatro dos Sonhos. Vamos, por uma questão de ordem cronológica da competição, dar lugar ao insólito. Para os menos crentes este local pode parecer inventado. Em plena década de 90 do século passado era possível, no escalão sénior, por uma qualquer eventualidade do sorteio sermos fadados a joga na prisão. Sim, essa mesma, no Estabelecimento Prisional de Coimbra. (In)felizmente as equipas onde joguei nunca foram as felizes contempladas a aí se deslocarem. No entanto, bem próximo de mim, na altura habitando a mesma casa e quarto, o meu irmão teve essa possibilidade. E, claro está, foi um evento digno de nota na altura. Apenas a equipa podia passar os portões da Penitenciária. Sem adeptos, sem paizinhos, sem amigos, sem claque. Uma vez lá dentro, os imberbes betinhos de Celas, mediram meças com criminosos condenados. Quero crer que o sistema prisional apenas permitisse a participação nos Jogos de criminosos de delitos menores. A verdade é que o jogo lá decorreu e recordo bem o discurso de quem lá esteve acerca de como a equipa do presídio não disfarçava um nervosismo mais caceteiro enquanto a partida não desatava em seu favor – mais tarde foi-lhes explicado que, para os prisioneiros, os Jogos de Coimbra eram um sonho, pois a possibilidade de irem à final dava-lhes o privilégio de, pelo menos nesse dia, respirarem o ar fora daquelas quatro paredes. Lembro-me ainda que dois jogadores marcaram a memória de quem lá esteve nesse dia. Um colombiano de cabelo compridão e que todos foram consentâneos a concordar que era o líder da equipa a quem todos obedeciam. Sisudo, calmo e sereno, figura de caráter e respeito. O outro era o Johnson, a dar ares de jamaicano, de tranças à Rijkaard, pivot goleador que não perdia a oportunidade para fazer balançar as redes. Nesse mesmo ano, a equipa da Penitenciária atingiu a final e foi mesmo jogar ao OAF, onde Johnson foi um dos homens da partida, merecendo destaque na página de desporto do Diário de Coimbra, a festejar o golo da vitória. É agora que finalizamos com o Teatro dos Sonhos, o Pavilhão dos Pavilhões, o Maracanã dos Pequeninos – O.A.F.. O O.A.F. era, à época, o principal recinto desportivo da cidade. Ali jogavam as equipas principais da A.A.C. de quase todas as modalidades, inclusive Futebol de 5. Era, por isso, mais que normal sentir uma tremenda vontade de poder ali jogar a grande final dos Jogos de Coimbra. A Champions conimbricense. Era a máxima consagração, a apoteose final, o deslumbramento juvenil no seu expoente máximo. Poucos tiveram esse privilégio, poucos tiveram essa sensação.  Felizmente tive a sorte de calhar numa excepcional equipa que viria a vencer a competição, ainda nas camadas juniores, em 1999. 4-0 se a memória não me falha. Um interessante episódio dessa final foi, no término do jogo, já com tudo a regressar aos balneários, uma figura desce as bancadas, dirige-se ao nosso melhor jogador (o craque que levou a equipa às costas) e faz-lhe um convite para integrar a equipa de Futsal da Académica. O nosso J. recusou educadamente, disse que o mundo dele era mais o Futebol de 11 e que era por aí que desejava continuar. O indivíduo que o convidou era um tal de Nuno Dias… Um foi o número 10 do Esperança durante uns anos. O outro, bem o outro é História. Decisões sábias dum puto de 16 anos. No final, para a eternidade, fica uma destas como na foto. E a vossa, losers?" #jogosdecoimbra #tatonascampeão #omaradonadecelas #craque