O Tribunal do Santo Ofício

 

Em 1544, por decisão do Rei, houve lugar à transferência de todas as Faculdades universitárias, com as cadeiras das Artes, Teologia e Medicina, para a colina mais alta da cidade  e, a consequente, perda de influência do Mosteiro de Santa Cruz, na tradicional ligação à Universidade. Após as vicissitudes devidas às várias reformas, os colégios de S. Miguel e de Todos-os-Santos, depois de albergar o Colégio das Artes I fundado por D. João III, foram cedidos, em 1541,para neles funcionar o Tribunal do Santo Ofício, criado por Bulas de 21/6/1536 e de 12/10/1553; a instalação foi operada por D Bernardo da Cruz, dominicano, sob as ordens expressas do Cardeal D.Henrique.
Os  inquisidores e familiares deste Tribunal,eram pessoas que, em seus intelectos de religiosos zeladores da salvação do próximo, cuidavam em levar toda a gente a interiorizar o Postulado: “O Homem saído do Paraíso é obrigado a voltar para lá, de preferência, voluntariamente”; preocupados em evitar o pecado da heresia (Qui non vetat peccare, cum possit, iubet), tinham os seus  alcaguetes a farejar, em redor, nas  verdes avessadinhas do Enganador Barzabú, para dali resgatarem o “gado ovelhum” arredio que, distraidamente, por lá andasse a pastar; apenas, curavam de evitar que perecessem no tremedal das heresias arrivistas; as penitências ad hoc a que estas ovelhas se sujeitavam eram, na pior das hipóteses, as célebres,teimosas e  litúrgicas cargas térmicas num “ sacro rossio” de três cidades,( Évora,Lisboa e Coimbra),  para que ninguém mais se tresmalhasse e para que todos se acautelassem por mais algum tempo, que o Céu podia esperar; e, aliás, fogueiras destas, seria sempre melhor vê-las que alimentá-las; por tal razão a elas estavam presentes aqueles que, tendo passado pela “joeira moral”. por sentença lavrada e assinada, fossem isentados de culpa de heresia e de costumes considerados “contra natura” ( bestialidade, homossexualidade, etc.) após interrogatórios conduzidos “com toda a caridade... quer na casa do oratório velho quer na do Despacho”(Belisário Pimenta Escritos Dispersos pág.121)!
Depois de ler um caso relatado ligado àquela citação ficámos a pensar que aquele tipo de interrogatório acontecia com todos os que fossem denunciados ao Santo Tribunal; porém, os mais aturados trabalhos visavam, mormente, a gente grada possuidora de bens ou ouro a confiscar por pressão real que precisava, desesperadamente, de “receitas confiscais”, que outras eram esgotadas, face à “banca rota” virtual a que o País tinha chegado ;  face a alguns destes  problemas de ocasião, a religião era quase um epifenómeno; assim, quem não tivesse, senão, ”garganta, e sem teres ou haveres, o seu processo levava uma carimbadela com o “despacho do costume”, que em falas de agora, teria, mais ou menos, uma redação parecida:  “Provou-se  que este indivíduo  é, apenas, curto de ideias e comprido de língua, (e ainda por cima, não tem onde cair morto); assim, para se lhe encurte a língua e  lhe  cresçam as ideias  arquive-se o processo ( “inútil e sem mais valias”)  aplicando-se-lhe   a sanção do costume, que é assistir  próximo da fogueira que lhe calhar, para  aproveitar o máximo do calor dela e ali assinar os autos de inocentado”.
As presenças nos Autos de Fé, como imaginámos, também, servia de emenda a uma pessoa para que se pusesse, mentalmente, no lugar dos que estavam a morrer pelo crime de discordar em matéria de convições e não só; os carrascos  teimariam por séculos a se substituírem a Deus para provocarem a morte não-natural !
Edgard Panão
( In, Bulário da Casa Grande  MinervaCoimbra)
Imagem: Painel de azulejos da Capela do Colégio das Artes - UC
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