Zé Lérias
Nas nossas andanças pelas ruas que nos viram crescer, fazíamos paragem obrigatória num lugar de culto e encanto, ferro e fogo: no Zé Lérias, situado à entrada da rua da Nogueira, no entroncamento com a Rua João Cabreira, um posto de observação privilegiado do ofício do mestre ferreiro batendo com o martelo no ferro em brasa sobre a bigorna, a que se seguia a operação higiénica nas patas dos animais e, já a frio, o ato de cravar as ferraduras nos cascos dos cavalos, inquietos com as moscas, aguardando impacientemente a sua vez.
Se o desassossego contagiava os miúdos que por ali andavam, o ajudante Benjamim ameaçava fazer-lhes o mesmo que fazia aos cães e gatos que lhe levavam pela trela: capava-os.
O ferreiro e ferrador Zé Lérias, calçava as cavalgaduras que pelas mãos dos donos ali se dirigiam para substituir as ferraduras desgastadas ou para colocar as primeiras «solas». Era um dos nossos pontos de interesse, enquanto meninos, consentido pelo artesão como se de um estágio profissional se tratasse. Como ferreiro, sempre com o avental de proteção à frente, fazia as ferraduras com o auxílio de moldes, na forja ativada pelo fole a bufar ar para atiçar o fogo, donde eram retiradas ainda incandescentes com a tenaz e levadas à bigorna para aí serem separadas do molde com o martelo.
Como ferrador, o mestre começava por prender as mulas, cavalos e burros ao «tronco» e, de costas viradas para o animal, levantava-lhe a pata e segurava-a entre as pernas, retirando-lhe a ferradura velha. Uma a uma, limpava e alisava o casco com a ajuda de uma lima grossa, ajustava a nova ferradura na bigorna e depois cravava-a com o auxílio do martelo, operação que acompanhávamos com a curiosidade de aprendizes, enquanto fazíamos umas festas tranquilizadoras no focinho dos animais, que correspondiam com um olhar dócil, pouco habituados que estavam a carícias.
E quando saíam, já enquadrados pelos varais das carroças, embora a escorregar por inadaptação ao novo calçado, os diligentes equídeos e muares já nem pareciam os mesmos. Preparados para entrar ao serviço, faziam o inconfundível som metálico dos cascos de gala na calçada, palas nos olhos, freio nos dentes, sem nos passarem cartão, temendo, mais do que tudo, as investidas do abominável chicote.
António Pinto dos Santos
In Por portas travessas
(Foto de José Martins Freitas Morais)