Editorial 03/05/2024

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SÓ REPUDIAMOS O QUE DESCONHECEMOS

Claro que há uma grande diferença entre ‘repudiar’ (com cariz de afastamento completo) e ‘não se rever’, mas aceitar a sua existência. É evidente que há exceções que conferem esta regra, mas até essas ‘exceções’ devem ser reduzidas ao seu número mais pequeno. Isto para que nos consigamos equilibrar como pessoas. Ou ganhar o Céu, acredite ou não nele :)

Ainda assim, esta nossa reflexão, garante um crescimento interior que vamos fazendo ao longo da nossa idade. O que me despertou para esta ideia, de que só repudiamos o que desconhecemos, aconteceu-me quando tinha os meus 15 anos. Que embora demorasse a entender a sua totalidade, acabou por me despertar para esta regra. Repudiava todas as disciplinas de ciências. A Matemática, a linguagem da ciência, estava no topo de repúdio. Por outro lado adorava as disciplinas de Educação Visual e de Português, a parte das interpretações e escrita, já a Gramática eram as “espinhas”. A realidade é que não fui muito talhado para o cumprimento das regras.

Já o meu amigo e companheiro de experiências, com testes dos fenómenos da Física, o Avelino, era o melhor aluno em Matemática. Tirava sempre a nota máxima. O que me fazia entrar no “clube das experiências” era a minha capacidade de desenhar os esquemas, para que a experiência corresse bem, e era o meu fascínio pelo espaço. Sobretudo os foguetões com os seus motores de propulsão - eram essas as experiências que fazíamos. Muitas resultaram, exatamente porque nos esquemas conseguíamos antever um problema e que não descansávamos enquanto não resolvíamos.
Não gostava de ciências, mas sentia-me útil no grupo daqueles pequenos cientistas. Tínhamos o Avelino, especialista em Matemática e Física - era uma espécie de líder do grupo; o Adérito, especialista em biologia e zoologia (alguns voos eram tripulados e mantínhamos a segurança dos insetos - os nossos “astronautas”); o Correia que era maluco por Química e que nos preparava as combustões e depois era eu o desenhador que levantava os problemas, registava as necessidades antes de iniciarmos a sua concretização.

Claro que neste grupo de rapazes acontecia que gostávamos de concorrer entre nós. Como o esquema ajudava a perceber tudo acabava a discutir com o Avelino que puxava pelos galões dados pelo seu estudo da Matemática e da Física. Um dia estava a ler um artigo sobre o infinito do espaço e deparei-me com a magnificência do infinito que ultrapassa a nossa compreensão. Como repudiava a Matemática acabei por encontrar uma falta de entendimento dado pela lógica: o infinito não é compreendido, na sua totalidade, para o entendimento humano. Ora assim sendo sabíamos muito pouco dos conjuntos de números, fossem pares, ímpares, fracionados, negativos ou outros. Ou seja, os matemáticos, que trabalhavam com conjuntos, afinal não tinham a compreensão total sobre a sua matéria prima - esta ideia fez-me sorrir de maldade. Pois era aqui que podia concorrer com o meu amigo Avelino.

Pensei logo, cá está um campo que conheço bem: as áreas que não são assim tão lógicas. Contrário ao que os meus amigos, amantes da Matemática, Física, Química e afins afirmavam. Para eles as disciplinas de ciências eram exatas. Não havia subjetividade. Tudo era preto ou branco, mas eu gostava, e ainda gosto, de muitas cores. O processo é sempre mais importante do que a finalização.

Eu gostava da polémica, da incerteza, de desmontar a lógica, da emoção...de tudo o que me fazia passear à beira do vulcão do pensamento. A minha adolescência levou-me a pensar que então o que parecia lógico, na Matemática, não o era assim tanto. Por isso pensei lançar um desafio ao Avelino: o conjunto dos números naturais (1,2,3,4...e por ai fora) era igual ao conjunto dos números ímpares (poderiam ser os pares que ia dar no mesmo).

O Avelino, rapaz de espírito muito lógico (hoje é Professor Universitário de Engenharia Mecânica), entendeu que eu, que tinha sempre negativas às disciplinas de ciências (as “exatas”) e que repudiava a “santa” Matemática, estava a dizer uma grande asneira quando dizia que o conjunto dos números naturais era igual ao conjunto dos números ímpares. Notem que não imaginávamos que um dia ia aparecer a internet.

O Adérito, também ele dado às ciências, mas mais para as da vida (campo mais escorregadio nas exatas), propôs que a professora de Matemática, senhora calma e paciente, poderia ser a juiz de uma aposta feita entre nós. O meu amigo Avelino e eu aceitámos o desafio. Eu ganharia um livro de banda desenhada do Tintin «Rumo à Lua», se estivesse correto, e ele ganharia o livro «História Breve da Astronáutica» de Eurico da Fonseca. Tanto Hergé, como Eurico da Fonseca (vale a pena procurar quem foi este senhor da Ciência portuguesa) eram os nossos heróis.

Fomos ter com a senhora professora de Matemática no fim das aulas. E apresentámos o nosso problema: o conjunto dos números naturais era ou não igual ao conjunto dos números ímpares?

A professora perguntou quem defendia um ou outro lado do problema. Não conseguiu disfarçar o ar de surpresa quando percebeu que eu defendia que eram iguais.

Pediu que cada um de nós explicasse o seu raciocínio. O Avelino explicou o seu ponto de vista lógico. Foi ao quadro e escreveu o conjunto dos naturais cabiam os pares e os ímpares e por isso era lógico que os naturais eram maiores do que os ímpares ou de que os pares. Só a soma dos pares com os ímpares poderiam igualar os naturais, logo não fazia qualquer sentido a minha teoria.

A professora não se pronunciou. Depois pediu que eu explicasse. Mas não conseguiu calar a surpresa e disse: «Não imaginava que tu, o aluno mais cábula e desinteressado da minha disciplina, estivesse tão interessado neste problema de Matemática pura» e sorriu pacientemente.

Expliquei que era fiel ao meu repúdio à disciplina e prometi continuar a tirar negativas a Matemática. Desatámos todos a rir. O absurdo era que eu não percebia a minha absoluta ignorância misturada com a arrogância - mistura explosiva de asneiras. Mas fui ao quadro e aproveitando o esquema que o Avelino tinha feito fiz corresponder a cada número natural um outro ímpar. Qualquer número natural tinha sempre um correspondente ímpar, ou par até ao infinito. Por isso provava a igualdade.

Todos olhámos para a professora de Matemática para sabermos, com ansiedade, qual era o veredito.

A professora explicou com pormenor o que estava a ser comparado e como se faziam comparações e “trás” quem estava certo era eu. O Avelino ainda argumentou e contra argumentou...mas de nada servia. A explicação da professora foi clara e desafiava o Avelino para que desse um número natural que não tivesse correspondência.

Nessa altura percebi uma coisa fantástica eu, afinal, gostava mesmo de Matemática. Na altura foi por ter ganho a aposta e estava cheio de mim. Esta tontice deu-me motivação para, ao longo do tempo (ainda anteontem comprei o livro «Buracos negros» de Stephen Hawking) acabar por ler mais sobre as ciências e acabei por gostar mais de ir espreitando este “mundo”, afinal menos exato do que afirmam os defensores das “exatas”, mas aberto a coisas que me interessam como artista.

Hoje, entendo que a ignorante arrogância é um defeito que se paga muito caro. Há coisas que só entendemos com o passar do tempo. O tempo é o elemento mais importante para apurar todas as coisas e todos os pensamentos.

Neste registo é importante que cada um goste, por exemplo, de política. Que não façam como eu e que não repudiem algo que faz parte do nosso dia-a-dia. Não podemos é confundir partidos com política. Assim como eu confundi maus resultados com repúdio a uma disciplina tão presente no nosso dia-a-dia e que é elemento importante nas diversas expressões artísticas.

Para não me alongar muito é esta a base que me fez circunscrever todos os assuntos tratado nesta semana. Se me permitirem o conselho: interesse-se por assuntos que diz repudiar e vai ver como afinal até são interessantes e que não merecem o nosso repúdio. Aconselho uma ida às livrarias e procurar livros nas áreas que não se interessa ou, para os mais corajosos, vá aos assuntos que repudia. Se acha que não gosta de um assunto vá até lá e procure o que pode despertar alguma curiosidade e por aí fora. Ou procurar na internet.

Bom fim de semana e boas leituras;
José Augusto Gomes
Diretor do jornal digital O Ponney