Editorial 15-02-2020

Balada da Cidade Jubilosa

Para mim, não há nada mais obsceno do que estarmos a falar ao telemóvel com alguém que, do outro lado, coloca o aparelho em voz-alta na presença de outros, conhecidos ou desconhecidos, sem nos questionar se o pode fazer e sem termos respondido que sim. É uma falta de respeito. Uma desconsideração. Tal como é obsceno estarem a obrigar-me a ouvir, no meio da rua pública, conversas ao telemóvel sobre assuntos que não me interessam nem me dizem respeito, entre pessoas que não conheço e, muitas delas, que não pretendo conhecer.

Na cidade onde estudar ainda é um prazer, observo os corpos que vão cansados de lado para lado, autómatos, debruçados sobre um telemóvel, indiferentes aos postes, às árvores e até aos outros transeuntes que se vão deparando pelos caminhos que se calcorreiam, incluindo gente amiga e conhecida. O dispersar das Faculdades deu vida aos lugares onde não havia vida, mas retirou beleza à Academia, agora muito menos concentrada. Antigamente, noutros tempos, no meu tempo, era uma alegria ver durante os dias e durante as noites as capas e as batinas e as pastas a circularem pela cidade em grupos não tão pequenos quanto isso, muitas vezes misturados com futricas, todos juntos, todos divertidos, cada qual com a sua estória gira para contar, nem que fosse a propósito da cara-metade que ainda não o era nem se sabia se viria a ser. Agora anda quase todo o mundo mudo, debruçado sobre a tecnologia que se desenvolveu incomensuravelmente e onde, é minha convicção, se registam as mais sofisticadas cábulas dos tempos modernos.

Quando amanhece na linda Coimbra, há um vai-e-vem que finda derivado do cansaço do estudo ou da boémia da noite, e um outro que nasce com a avidez dos dias sempre novos, por descobrir. Mas, também, há aquele cansaço que cansa: o dos dias sempre iguais, modorrentos, sempre com tudo quase sempre na mesma, estagnado, sem novidade e sem notícia.

Se o Zeca fosse vivo, haveria Deus de inspirá-lo para compor uma bela melodia acompanhada de uma bela letra que se fundiriam em ode, que falaria dos novos tempos que caracterizam alguma insociabilidade que graça na terra do inspirador Bazófias. Talvez para ser apresentada em primeira mão ao vivo, ali mesmo no Gil Vicente, junto à Praça onde já não existe a velha esplanada nem o icónico Mandarim, lugares onde se fingia que se estudava apesar de se estar muito mais concentrado a olhar para as pernas que se pressupunham mais fibrosas e apetecíveis. Mas, contudo, local onde ainda existe muito e muito espírito academial, e onde ainda se formam muitas e muitas trupes, para júbilo de uns e pânico de outros.

Hoje, quando amanhece, há por Coimbra fôlegos de ventos novos. Talvez se avizinhem mudanças.

De que me adianta falar sobre o que Machado não faz e eu gostaria que fizesse, se é por demais sabido que, sobre isso, teria eu de falar, pelo menos, uma quase eternidade? E eu não sou deus, nenhum deus que pretenda estar assim tanto tempo a falar sobre nada, à espera que do nada se faça tudo. Eu aguardo tudo - sou do tempo em que ser-se persistente e optimista eram alguns dos principais predicados que caracterizavam os assertivos.

Adianta, isso sim, falar de esperança. Coimbra é muito mais do que tanto disso que está por fazer! É que, um dia destes, juntar-se-ão uns quantos da Academia antiga e da nova, sonha-se, constituirão uma trupe com sentidos e sentimentos mistos e ainda, digo eu, haverão de chegar lá acima, à escadaria da Sé Velha, para improvisarem um concerto de fados e de cantigas de amor e de amigo e de bem-dizer. Concerto que decerto, apesar de inesperado, será ouvido e comentado por toda a Cidade, por todas as instituições da Cidade: pela baixa, pela alta, pela Academia, pela Académica, pelo Município, pelo metro, pelo aeroporto, pela cidade limpa, por todo o lado. E que bela serenata haveria de ser.

E não adiantará perder tempo a falar do que faz falta. O que faz falta é mesmo isso: lutar e conseguir-se que nada falte.

Hoje, achei engraçado escrever sobre Coimbra, a Cidade por que me apaixonei para a eternidade, a minha eternidade. A Cidade que não é só dos conimbricenses, nem minha: a Cidade que é de milhares, quiçá milhões, de pessoas que passaram pela Academia, mas não só. Uma Cidade Risonha.

E hoje, sentado no Parque a olhar a Cidade que se aproxima das memórias que ficaram, com a as recordações vivas que o Bazófias exala, apesar das diferenças, sinto que valeu a pena por cá ter passado e ter-me apaixonado por ela assim de uma forma eterna. E esperançado de que as promessas se materializem e que melhorias ocorram nela mesmo com olhos de se ver.

© Luís Gil Torga

(Luís Gil Torga não respeita o AO90