A lenda de Maria Severa Onofriana e a origem do fado
Falar das origens do Fado português é, quase imperativamente, falar de uma lenda da Severa. Claro que não foi ela que inventou este estilo musical, mas foi essa a figura, talvez até a primeira de todas, que contribuiu para lhe dar uma cara real e uma história que é tão visível quanto audível. Portanto, na sequência de uma conversa informal sobre qual terá sido a prostituta mais famosa de Portugal, decidimos então abordar hoje um tema que já estava planeado há alguns anos mas que acabou por não se ir concretizando, o da breve história que une esta conhecida figura feminina àquele que é provavelmente o mais famoso estilo musical nascido em Portugal.
A figura que nos ficou conhecida sob este simples nome nasceu com o nome de Maria Severa Onofriana a 26 de Julho de 1820, tendo depois falecido a 30 de Novembro de 1846, ou seja, aos 26 anos de idade. Pelo caminho, sabemos que era considerada muito atraente fisicamente, que deverá ter sido prostituta, que cantou o Fado, que mudou de casa várias vezes (sempre em Lisboa, frequentemente na zona da Mouraria), e que se envolveu romanticamente com Francisco de Paula de Portugal e Castro, o 13.º Conde de Vimioso. Terá sido essa associação romântica, ou talvez apenas puramente sexual, com esse nobre que contribuiu para a sua fama, mas... além destes elementos muito vagos, parece que tudo o mais que a envolve está cerrado numa neblina difícil de afastar. Isto porque, face à falta de informação mais fiável sobre esta figura, se parecem ter indo inventando todo um conjunto de histórias ficcionais(?) sobre ela - o pai era sido um cigano, ela envolveu-se com vários outros membros da nobreza, teve um conjunto enorme de peripécias sexuais, e tantas outras coisas que tais, ideias aparentemente nascidas da sua morte prematura e da própria natureza do Fado, que então lamentava a crueldade que a vida nos pode trazer a todos. É uma ideia bem captada no chamado Fado da Severa (posteriormente vários outros tomaram este mesmo nome), cuja versão registada ainda em 1847 reza a seguinte história:
Chorai, fadistas, chorai,
Que uma fadista morreu,
Hoje mesmo faz um ano
Que a Severa faleceu.
Morreu, já faz hoje um ano,
Das fadistas a rainha,
Com ela o fado perdeu,
O gosto que o fado tinha.
O Conde de Vimioso
Um duro golpe sofreu,
Quando lhe foram dizer,
Tua Severa morreu!
Corre à sua sepultura,
O seu corpo ainda vê:
Adeus ó minha Severa,
Boa sorte Deus te dê!
Lá nesse reino celeste
Com tua banza na mão,
Farás dos anjos fadistas,
Porás tudo em confusão.
Até o próprio S. Pedro,
À porta do céu sentado,
Ao ver entrar a Severa
Bateu e cantou o fado.
Ponde nos braços da banza
Um sinal de negro fumo
Que diga por toda a parte:
O fado perdeu seu rumo.
Chorai, fadistas, chorai.
Que a Severa se finou,
O gosto que tinha o fado,
Tudo com ela acabou.
Estes versos foram sofrendo as mais diversas alterações ao longo do tempo, existindo hoje em múltiplas versões, como este exemplo recente permite atestar, em que apenas foram cantados os versos presentes a negrito na letra acima, composta menos de um ano após a morte da lendária heroína:
Neste seguimento, se parece ser mesmo essa a própria natureza deste estilo musical, a intenção de cantar um triste destino de alguém, que até podemos tradicionalmente associar à própria pessoa que canta, somos levados uma questão adicional, mas nem menos importante - se não foi esta famosa figura nacional a inventar o próprio estilo, qual é mesmo a origem do Fado?
Sobre essa origem do fado, seria muitíssimo interessante dar-se aqui uma resposta como "Ah, foi inventado em inícios do século XIX pela pessoa X", mas de facto não se parece ter uma completa certeza da sua origem. Terá sido a heroína de que já falámos acima a primeira a popularizar este estilo musical entre as massas nacionais e internacionais, mas ninguém parece argumentar, com conhecimento de causa, que terá sido ela própria a inventá-lo. Em alternativa, se até parecem existir muitas teorias sobre a sua génese, entre as que fomos lendo em diversas obras são três as que têm aqui especial interesse.
Uma dessas teorias sobre a origem do fado diz que este nasceu nos muitos caminhos marítimos viajados pelos portugueses, talvez entre criminosos desterrados para o além-mar, que se lamentavam dos caminhos a que a vida os tinha conduzido. Uma outra diz que estas canções eram verdadeiros lamentos das classes mais desfavorecidas, como na agora-famosa canção Povo que lavas no rio, cantada por Amália Rodrigues. Uma terceira diz que esta forma musical veio do "fado" brasileiro, que era um tipo de dança sobre a qual pouco se parece saber sobre as letras. Em todos os casos, a própria designação que lhe é dada - o "fado", no sentido de destino, sorte, fortuna, como no caso das fadas de outros tempos... - parece apoiar pelo menos as duas primeiras hipóteses, ainda para mais se se tiver em conta que, originalmente, ele era cantado em tabernas frequentadas por gente pobre. Se sabemos que Ana Gertrudes Severa, mãe da heroína de que falámos hoje (o pai, esse, parece ter sido um quase-esquecido Severo Manuel de Sousa), até tinha o seu estabelecimento, é provável que tenha sido isso que conduziu a própria filha para estas artes... mas já não se parece saber, infelizmente, que letras cantava ela nessa altura. Só poderão ter sido tristes, como a própria vida das classes baixas lisboetas da sua época.
Bem, mas as linhas de hoje já vão longas. Conclua-se. Faz todo o sentido falar-se de uma lenda de Maria Severa Onofriana porque, se ela até foi uma figura bem real, os contornos mais precisos da sua vida são hoje quase desconhecidos, o que gerou uma construção da sua vida que assenta mais na ficção e no pressuposto do que em factos comprováveis. O que sabemos é que ela terá tido uma vida difícil e faleceu cedo, elementos inspiradores de um primeiro fado que tomou o seu nome (reproduzido ali em acima), e que, de um modo mais geral, parecem estar frequentemente envolvidos na própria origem do fado. Isto, apesar de já não se saber quando ou onde nasceu este estilo musical, por se ter tratado, na sua forma original, de algo ligado às classes mais desfavorecidas, a que as elites anteriores ao tempo de vida de Francisco de Paula de Portugal e Castro, 13.º Conde de Vimioso (viveu em 1817-1865), parecem ter prestado muito pouca atenção...
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