O TEATRO NA MUDANÇA DE ANO

SAUL5

 

O que me encanta na passagem de ano é a maneira hábil de representar, a partir de dois personagens, as diferentes faces de uma perceção do mundo. Temos o Antes (neste caso o 2024) e o Depois (representado pelo 2025).

O Antes é um daqueles tipos irascíveis, autoritários, sem papas na língua, que prefere perder amigo a perder um comentário corrosivo e por isso já passou.

O Depois é um daqueles falsos humildes, olham o mundo de cima para baixo, um dandy que se pretende bonzinho como uma Madre Teresa de Calcutá que fosse à night. Ninguém sabe o que esperar dele.

Na peça estão reunidos, numa aparente infinita discussão sobre o valor de um quadro branco com riscas brancas em específico. Falei aparente porque na verdade os verdadeiros temas são o que é a amizade e as diferenças sobre como vemos o mundo e como somos vistos por ele. Esse é que é sempre o verdadeiro sentido de mais um ano.

Escusado será dizer que os personagens (2024 e 2025) vivem, cada um à sua maneira, a crise da meia idade. Estão todos cansados do que já foram e procuram novas maneiras de se relacionar com o outro. Claro está que essa ansiedade em mudar, recolocar as coisas, reposicionar-se a si e ao alheio, só gera dissabores e confusões, E é aí que reside o verdadeiro eixo da nossa peça que é a passagem de ano: ninguém está 100% satisfeito com os outros e consigo mesmo. Ninguém sabe ao certo o que fazer com a vida. Ninguém alcança um tal momento de estabilidade e confiança a ponto de não precisar da opinião alheia.

Vale a pena ver com outros olhos a passagem de ano. Vale a pena rever outra passagem de ano. No meu caso, por exemplo, acho incrível como a cada visionamento me desloquei de personagem. Na primeira vez só consegui identificar-me com alguém que tem a missão de se agarrar às amizades com cuspo, de levar na cabeça forte e feio por não conseguir viver sem o amor externo (mesmo que ele não seja demonstrado física e verbalmente).

Num outro ano revisto, acreditei mais no ano seguinte, o Depois, o que é curioso, pois naquele momento não consegui ver os defeitos intrínsecos do personagem, colando-me só às suas qualidades (alguma ponderação para o ano seguinte, uma tendência exarcebada para racionalizar as coisas comprando uma agenda nova e tudo).

No ano passado, 2024, acabei por me identificar com o Antes. Fiquei-me pelo Antes e a sua impaciência com o ser humano. Será que ainda não aprenderam com as guerras, as pestes e as fomes?

Porém esta última passagem de ano, naveguei pelos dois personagens, descobrindo pedaços de mim aqui e acolá, aceitando com algum estoicismo que não passo de um boneco de pano feito de retalhos contraditórios e extemporâneos.

Na realidade tudo o que começa tem que terminar.
Confesso que nunca tinha pensado na coisa por esse prisma!

Mal ou bem, é a primeira vez que vivo como um homem com cinquenta e tal anos (e o meu avô avisa que também será a última) e tinha a ilusão de que a coisa poderia ser mais divertida. Não é. Ou, pelo menos, não é mais do que foi a infância ou a adolescência. Há mais dinheiro para se fazer as coisas. Mas há menos tempo, menos disposição, menos alegria em fazer. E, essa é que é essa, nós (os homens) temos tanta abertura para debater os nossos problemas como a abertura de uma cabeça de agulha.

Fica aqui uma maneira, talvez, diferente e que pode soar a mariquinhas, mas é a minha maneira de ver a passagem de ano.

Já agora: boa mudança de calendário!

Saul Abrantes