COISAS QUE SÓ ACABAM QUANDO TERMINAM
A verdade é que a salada e o passado têm muito em comum: não têm lá muito bom aspeto, mas são inofensivas.
Confesso que na altura do 25 de Abril de 1974 ainda não tinha nascido, viria a nascer um ano depois e num salto de tempo galgamos 51 anos. “O tempo passa, o tempo passa”, repete a voz na minha cabeça entre um suspiro e outro. Assim é, o tempo passa, concordo sempre com a voz da minha cabeça para não deixar a conversa sem ritmo e sem rumo. Mesmo só tendo nascido 1 aninho e mais uns meses e menos alguns dias do 25 de Abril, autorizo-me o atrevimento de refletir em ritmo e rumo sobre o 25 de Abril de 1974.
Ritmo e rumo sempre foram dos nossos principais problemas, enquanto portugueses. Começámos uma revolução, que não era como as dos outros países. Não houve tiros a sério, nem lutas engalfinhadas. Tudo muito institucional. O sistema estava instalado meio a dormir embalado pelo silêncio que se fazia sentir em Portugal e um dia acorda com uma revolução. Como fizeram algum barulho, a maioria acordou em alvoroço e sem saber o que significavam as canções revolucionárias tocadas no rádio. Nunca tive a certeza de desejar sair das cascas e por isso nunca senti a revolução como verdadeira. E isso faz alguma diferença, mas é a verdade.
Ritmo e rumo, já disse, era o que nos faltava. Cada português queria ir para um lado com diferentes velocidades, como os presidiários patetas num daqueles filmes de fuga do presídio, presos uns aos outros por algemas nas pernas e, talvez por isso mesmo, nós portugueses, não fomos para muito longe, mais preocupados em lutarmos uns com os outros do que a definir rumo.
Sem ritmo, claro, tentámos arrancar os braços uns dos outros à dentada e assim se deram as várias guerrinhas entre o PCP e o MRPP; entre o PS e o PCP; o ataque selvagem ao primeiro congresso ao CDS que ainda não tinha o PP (Paulo Portas); nem havia o jornal Independente, urbano lisboeta que é o mesmo que dizer cegos no nosso provincianismo de imitar os estrangeiros. Fossem ingleses, russos, cubanos, chineses ou “amaricanos”.
Ritmo e rumo. Os bufos que bufavam que o vizinho era comunista, quando era apenas um pobre pateta que atirava migalhas ao vizinho bufo que vivia por baixo do seu apartamento, filiaram-se logo no PCP ou num partido com a chancela dos defensores do paraíso na União Soviética como “anti-fascista”. Depois do 25 de Abril, vieram os caçadores de “bruxas” e perseguiam todos os que usavam óculos escuros e conduzissem carros maiores do que um Mini - eram potenciais pides. Na realidade eram apenas gente igual a tantos outros, mas com o sol a incomodar muito os olhos.
Todos percebiam de política panfletária e as famílias dividiam-se entre reacionários que não queriam que lhes tirassem o que era seu e progressistas com óculos graduados a vermelho que diziam que todas as críticas à União Soviética eram apenas propaganda americana. Americana, mas dos Estados Unidos da América ou “amaricana”.
Sempre pensei, e ainda continuo a pensar que nos faltava ontem, como hoje, ritmo e rumo. Faço esse comentário, aos meus amigos mas ninguém ri. Estranho, era mesmo uma piada. Onde foi que perdemos o humor?
Não, não sei onde foi que perdemos o humor, nem porque parámos, nem porque estavam a tentar ressuscitar o cadáver do que foi a enorme esperança nascida em Abril de 1974. Talvez tenha a ver com o facto de que com a idade a memória afetiva fica meio fosca e já não sentimos mais o calor que dá a Liberdade de gritar, nem estamos muito preocupados em lembrar misérias antigas em que, provavelmente, nos habituámos a calar. Tem a ver com a realidade de que é tão difícil de encarar e o silêncio foi-nos impregnado no nosso DNA que passou de avós para pais e destes para os filhos. De tanto ouvirmos “a minha política é o trabalho” acabámos por acreditar que a miséria que ganhamos é inevitável.
A ditadura ensinou a odiar em silêncio e habituámo-nos a ter um “bode expiatório” para culpar a frustração que nos teima em dar a mão. Agora não sabemos amar o que desejamos para o Futuro. Essa é que é essa!
É um dos paradigmas de quem chega aos cinquenta anos: o eterno retorno. Estamos sempre a querer voltar para o passado como algo bom ou tendemos a branquear os tempos da “outra senhora”. Ou como diria o meu avô: "Coisas que só acabam quando terminam." A realidade é que ainda nem começaram a sério a promessa que nos fez o 25 de Abril de 1974.
Maria Júlia