Recordações

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Aquele menino magrinho de camisa branca sou eu. No dia da inauguração da pista de aviação de Dulombi-Guiné

OS PÉS DE CHUMBO DO EXÉRCITO A CONSTRUIR AERODROMOS

( Ou… quem te manda a ti sapateiro tocar rabecão…)

Depois de mais de dois terços da comissão em que a  CCAÇ 2405 se encontrou dispersa, sempre com pelo menos 3 Grupos de Combate destacados em tabancas circundantes a uma distância razoável de Galomaro onde estava a sede da Companhia, o pessoal foi finalmente reagrupado na tabanca de Dulombi.

Depois de ter construido um quartel em Galomaro e criado as condições de instalação, foi mandada para Dulombi onde nada existia.. Onde nunca tinha estado tropa estacionada…

E a poucos meses do fim da comissão foi necessário recomeçar tudo de novo.

Edificou-se o bunker do Capitão, assim chamado por ser uma autêntica fortaleza de betão armado, de paredes e lajes duplas, à prova de qualquer tipo de projectil por mais potente que fosse.

Para o restante pessoal escavaram-se abrigos enterrados, cobertos de palmeiras e terra, e rasgaram-se variados percursos desenfiados, vulgo, valas de circulação entre abrigos.

Rodeou-se a tabanca de arame farpado duplo, protegido por uma densa rede de minas e armadilhas que o Alf.Mil Raposo espalhou como só ele sabia…

Montou-se debaixo de um enorme mangueiro existente no centro da tabanca, a messe de oficiais e sargentos e ao lado o armazém de viveres…

Sem grande protecção, diga-se…

Faltava, porém, uma obra importante!

Uma pista de aviação que possibilitasse a aterragem dos Dornier, que trariam correio e viveres frescos com assiduidade semanal.

Para além de que a vinda de meios aéreos de reabastecimento, diminuiria em muito o número de colunas de reabastecimento do Dulombi até Bafatá, com o cansaço e perigos inerentes.

Obtidas as autorizações necessárias à sua construção, iniciou-se o planeamento e execução.

Por determinação do Capitão, fui eu o escolhido para dirigir a construção.

Como se eu tivesse algum conhecimento de aviação ou de construção! Mas a tropa manda desenrascar…

Designei como meu adjunto o furriel Veiga ( de Transmissões ), que, como eu, não percebia nada daquilo….

Entusiasmado, sentei-me à mesa com a carta geográfica da zona e, em consonância com o Capitão, traçámos no mapa as linhas delimitadores da futura pista, que ficou definida como ficando paralela ao topo norte do quartel, no sentido Leste-Oeste.

Tinha a grande vantagem de a meio da pista existir uma lomba natural de terreno que, segundo os especialistas da Força Aérea que contactámos, era optima para amortecer a velocidade do avião durante a aterragem e auxiliar a sua subida durante a descolagem.

O Veiga começou de imediato a dirigir o arranque de árvores e desmatagem do terreno escolhido, alargando essa limpeza de árvores nos topos da pista para facilitar a aproximação das aeronaves.

Uma equipa foi designada para recolher, perto de uma fonte existente ali perto, o que pudesse de cascalho e pedra para compactação da pista.

Só quem conhece a Guiné imagina a dificuldade de cumprir esta tarefa…

Costumávamos dizer que a guerra acabaria, se os combates fossem obrigatóriamente à pedrada… Pois cedo se acabariam as munições, tal a escassez de pedras naquela terra.

Quando o terreno já se encontrava limpo e mais ou menos compactado com a passagem constante de camiões e máquinas por cima dele, quis ser eu pessoalmente a dirigir a marcação das bermas da pista…

No fundo, ia proceder à definição própriamente dita do seu desenho definitivo.

Já tinha calculado e recalculado na carta geográfica, os azimutes que serviriam de guia á implantação no terreno das linhas delimitadoras da pista.

Muito compenetrado do meu papel ( sinto me meio ridiculo hoje ao recordar a minha cagança de então, convencido que era o maior….), mandei uns soldados fixarem no terreno duas estacas e coloquei-me no ponto de cota de origem que já antes tinha localizado no terreno.

Espreitei pela ranhura da pequena bussola militar, onde marquei o azimute préviamente calculado na carta, e mandei afastar para a esquerda e para a direita as estacas espetadas no chão mais à frente.

Até que, com ar de mais inteligente que os outros, rematei:

- Pronto! As duas primeiras estacas já estão alinhadas….. Agora coloquem mais duas a seguir àquelas e eu e esta bussola, definirei a sua localização alinhada e exacta….E assim sucessivamente até ao fim da pista!

Notei que um dos soldados que me ajudavam nesta tarefa, olhava para mim com uma expressão de incredulidade.

Era o Rio, soldado do Grupo de Combate do Alf.Mil.Raposo, que na vida civil era pedreiro e que por infelicidade dele não tinha concluido sequer a 4ª classe….

Perguntei-lhe:

- Diz lá Oh Rio… Parece que queres dizer alguma coisa, ou não?

Disse-me:

- O meu alferes desculpe, mas acho que estamos com um trabalho do caraças, quando era muito mais fácil esticar um cordel entre a primeira estaca e outra no fim da pista e marcar no chão o risco que seria a berma.

E continuou:

- O meu alferes só tem que dizer onde quer que a pista comece e onde quer que ela acabe… Depois estica-se o cordel…

Sorri condescendente e retorqui:

- Oh Rio, és um gajo porreiro, mas não te ofendas.. Estas coisas de azimutes e coisas assim, tu não percebes nada disso.. E isso de esticar o cordel pode servir para trabalhos simples, mas não te esqueças que isto é uma pista de aviação!

Continuei pois com o trabalho como eu achava que devia ser feito.

O Rio, disciplinado como era, não voltou a fazer mais comentários.

E chegou o grande dia!

Quando eu dei por concluida a “obra”, o Capitão pediu a Bissau que mandasse um avião inspeccionar a pista e aprová-la para futuros voos regulares.

No dia seguinte, com alguma ansiedade, vimos um Dornier sobrevoar o Dulombi, e depois de duas ou três voltas, disse que ia aterrar, pedindo que o responsável pela construção daquela obra prima se aproximasse do avião para com ele levantar voo de novo…

Logo que aterrou, aproximei-me do Dornier que, ainda com o motor a trabalhar, me aguardava.

Abri a porta e sentei-me ao lado do piloto ( era o Sargento Honório, de origem caboverdeana e tido como um dos melhores da Força Aérea da Guiné ).

Estendeu-me a mão, e perguntou-me de chofre, com ar de gozo:

- O meu alferes é que é o autor deste “aeroporto”?

Respondi-lhe que sim, ainda orgulhoso e convencido de ter feito um excelente trabalho.

Continuou, rindo:

- Já lhe vou mostrar isto visto de cima. Mas já o vou avisando que bem pode limpar as mãos à parede….

Não foi preciso dizer-me mais nada nem subir muito alto…

À medida que o avião ia subindo, reparei no desenho da pista perfeitamente visivel lá de cima.

O traçado ia a direito até ao sitio onde existia a tal lomba de que falei ao principio.

Depois disso, desviava-se considerávelmente do traçado inicial, fazendo uma declinação de alguns 30 graus para a direita.

Dito de outra forma, aquilo que deveria ser uma linha recta, era de facto um L mal desenhado…

Fiquei descoroçoado….e perguntei-lhe:

- E agora… Temos que refazer tudo e corrigir o erro, não é?

Ele disse:

- Nada disso, a Força Aérea aterra em qualquer sitio! Não se preocupe….

   Vai ver agora na aterragem, o que eu vou fazer….O avião percorre metade da pista e a meio só tenho que lhe dar um cheirinho para a direita…

Desconheço se a pista ainda existe….

Mas a verdade é que mesmo torta ela foi de grande utilidade, e os aviões aterravam lá uma vez por semana…

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E aprendi uma lição para o resto da vida:

A mais simples opinião de um analfabeto nunca deve ser desprezada…

Ela contém sempre algo de experimental que o conhecimento da escola nos não dá…

E a experimentação pode conter formas expeditas de resolver os problemas, muitas vezes mais inteligentes que as elaboradas formas cientificas estudadas nos gabinetes..

  Rui Felicio

Ex- Alf.Mil.Inf.

CCAÇ 2405