UMA EXPLICAÇÃO DO NOSSO TEMPO

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Sándor Márai (1900-1989) foi um escritor húngaro que viveu em Budapeste até 1948, data em que se exilou no ocidente. Anti-nazi e anti-comunista, a sua obra romanesca reflete em grande parte a nostalgia pelo cosmopolitismo e pela qualidade da vida e da cultura do antigo Império Austro-Húngaro.

 

"Föld, föld…! (emlékezések)" é um livro de memórias da vida do escritor entre 1944 e 1948, publicado em 1972. O livro está traduzido em várias línguas (infelizmente não em português).

 

É da tradução italiana da maravilhosa editora Adelphi, que retiro estes parágrafos inaugurais, que verti para a nossa língua. Peço-vos que leiam, e que, no final do extracto, onde se lê "nacional-socialista", releiam "socialista". Afinal o ethos nacional-socialista é apenas uma sub-espécie do ethos socialista, e dele devedor.

 

Tal como um tigre é um felino, e uma mesa uma peça de mobiliário.

 

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Terra! Terra!

 

"Na Hungria, as celebrações onomásticas sempre fizeram parte das festividades alegres e tribais, repetidas anualmente. Por isso, também naquele ano de 1944, no dia de Santo Alexandre [NT: referência ao nome Sándor, que é a tradução húngara de Alexander] – o 18 de Março, segundo o calendário gregoriano – convidámos para jantar alguns parentes.

 

Um jantar modesto, como o impunham as restrições do tempo e da guerra. Mas nessa ocasião os nossos amigos que viviam nas margens do Lago Balaton ainda nos tinham conseguido enviar algumas garrafas do vinho encorpado, amadurecido no fogoso terreno vulcânico da região: estava uma noite de frio pungente de início de primavera e o vinho forte e as salamandras carregadas, que aqueciam os convidados, enchiam-nos de prazer. Estávamos na sala de jantar da velha casa de Buda, onde morei por quase duas décadas.

 

Há dias que os homens vivem com uma espécie de certeza instintiva, como se tivessem ouvido uma notícia que vai ter um efeito directo sobre as suas vidas; não se sabe o que é, mas o momento chegou, ouvimo-lo no ar. Aquela festa do meu homónimo, de Março de 1944, soava assim. Nada "sabíamos" com certeza, mas todos pressentíamos que se estava preparando, na verdade que era iminente, uma mudança substancial e decisiva.

 

Naquela época, na escura metrópole, no tempo de Voronezh e de outras tragédias de guerra, até mesmo os habitantes da cidade, que até então tinha sido relativamente poupada, não levavam mais a vida mundana do passado. E porém, naquela noite, a minha mulher tinha preparado o jantar de acordo com os costumes antigos, como quando recebíamos convidados em tempo de paz: os criados tinham retirado da parte inferior dos armários o serviço de porcelana de Meissen com os seus motivos de cebola, colocado os alimentos nas pratas da família e, um verdadeiro luxo, dois candelabros franceses, sem luz eléctrica, que iluminavam os convidados e a toalha de mesa decorada. À volta da mesa oval éramos onze. Depois daquela noite, nunca mais estas onze pessoas se sentaram juntas. E é pouco provável que possam fazê-lo agora, pois a maioria delas morreu.

 

A chama misteriosa e íntima das velas fazia brilhar as faces, o círculo de convivas burgueses, o mobiliário antigo. Eu nunca tinha comprado móveis: os que possuía tinham-nos chegado como parte da herança das duas famílias, originárias da Alta Hungria. Tínhamos peças valiosas, mas nenhuns móveis de produção em série: tudo tinha sido escolhido de acordo com os gostos e os hábitos dos nossos antepassados.

 

Entre essa sala e os outros quartos todas as portas estavam abertas. Agora, quando recordo aquela imagem iluminada pelas chamas bruxuleantes, quase misteriosas, das velas, tudo me parece como se nós, os descendentes da burguesia de Buda e da província, quiséssemos por uma última vez representar à nossa maneira a vida dos nossos pais. Naquela noite, tudo o que tinha sido parte das cenas e os adereços do passado adquiriu vida.

 

A conversa tinha arrancado com dificuldade, mas o vinho e a conversa suave e familiar ajudaram a superar a tensão inicial, e a tertúlia continuou, uma vez terminado o jantar, diante do vinho e do café.

 

Como é inevitável chegou o momento em que convidados e anfitriões começaram a falar com grande fervor de política. Aquela noite permaneceu memorável e especial não só por causa do que ocorreu logo a seguir – a aniquilação total de um modo de vida –, mas também por uma outra razão: tinha de novo chegado o tempo em que os homens advertem a calamidade por meio dos seus instintos, tanto quanto por meio da razão e da informação. À excepção de um, todos os nossos convidados eram anti-nazis. Mas todos temíamos o fim da guerra e tentávamos, cheios de preocupação e cautela, adivinhar como seria o futuro iminente, que frutos traria a primavera gelada, como iria evoluir a situação militar, e que poderia a Hungria esperar daquela mudança epocal.

 

Sobre um facto estávamos de acordo: que não se podia esperar nada de bom. Mas, pouco depois, o parente pró-nazi veio com a lenda das "armas secretas". Na época, o país estava dominado por esses contos de fadas: falava-se de uma arma capaz de "congelar" o inimigo, bem como de aeronaves tão rápidas que os pilotos tinham que ser amarrados nos seus postos para não caírem. Rechaçámos esse absurdo com um aceno de mão.

 

O que não poderia ser rechaçado com um aceno de mão era o medo, o medo da realidade: aproximava-se o desenlace da guerra. Quando eu disse que era necessário assumir a responsabilidade pelas consequências e romper com os alemães, quase todos os convidados, embora hesitantes, me deram razão: mas não o parente pró-nazi, que reagiu. Tornado eufórico pelo vinho, tamborilou com os dedos sobre a mesa, e repetiu as frases que apareceram na imprensa sobre a necessidade de "se manter firme e permanecer fiel aos Aliados."

 

Mal o contrariei, deu-me uma resposta surpreendente: "Eu sou nacional-socialista. Tu" – e apontou para mim – "não podes entender, porque és dotado, talentoso. Mas eu não, e é por isso que eu preciso do nacional-socialismo."

 

in Sándor Márai, Terra!Terra!... (pp. 1-2).

José Costa Pinto