AS ASNEIRAS FACEBOOKIANAS DA NOTÍCIA EXPLOSIVA DA DESCOBERTA DA AUSTRÁLIA PELOS PORTUGUESES
Aparece na internet, em publicações de utilizadores ou em sites pseudo-científicos que agora se provou que a Austrália foi descoberta pelos portugueses. Estas notícias sensacionalistas mostram a ignorância dos pseudo-investigadores americanos, e sobretudo dos jornalistas. Há muito que é do conhecimento de qualquer historiador das Navegações e dos Descobrimentos que Cristóvão de Mendonça chegou à ilha-continente, em 1522.
E a primeira e mais basilar prova está patente aos olhos de todos na série de mapas conhecidos como Mapas de Dieppe, produzidos por uma oficina de cartografia na cidade francesa de mesmo nome, entre 1536 e 1566, e que revelam uma fonte portuguesa. Alguns dos mais importantes mostram uma terra chamada Jave La Grande, que tem uma configuração de costa como a ocidental australiana, e em alguns casos representando até formas vegetais e etnográficas.
O primeiro escritor a referir estes mapas como uma evidência da descoberta portuguesa da Austrália foi Alexander Dalrymple, em 1786, numa nota curta do seu livro "Memoir Concerning the Chagos and Adjacent Islands". Desde então, diversos autores identificaram a Austrália como sendo a Jave La Grande dos mapas de Dieppe. Entre estes, incluem-se Richard Henry Major, conservador da Secção de Mapas do British Museum que, em 1859, publicou de “Early Voyages to Terra Australis”; George Collingridge que, em 1895, deu à estampa “The Discovery of Austrália”, e reproduziu um número de trechos de "Jave La Grande" de diversos mapas de Dieppe, especialmente para o público de língua inglesa. Já no século XX, desde logo Kenneth Gordon McIntyre, em 1977, publicou “The Secret Discovery of Australia. Portuguese ventures 200 years before Captain Cook”, obra que alcançou larga divulgação na Austrália e que é a mais conhecida entre as que demonstram que "Jave La Grande" é a Austrália. Lembremos também Roger Herve, conservador da Secção de Mapas na Bibliothèque Nationale de France, que argumentou que "Jave La Grande" demonstra a evidência ds descobrimento português e espanhol da Austrália e da Nova Zelândia, entre 1521 e 1528. A sua obra “Chance Discoveries of Australia and New Zealand by Portuguese and Spanish Navigators between 1521 and 1528” foi publicada em língua inglesa, em 1983. Lawrence Fitzgerald, em 1984, escreveu “Java La Grande” e comparou as linhas costeiras como mostradas no mapa "Delfim" (1536-1542) e no de “Desceliers” (1550) com a actual linha costeira da Austrália, argumentando que os cartógrafos de Dieppe uniram incorrectamente mapas portugueses.
Em 2007, o jornalista Peter Trickett, publicou a obra “Beyond Capricorn”, na qual afirma que foi cometido um erro na junção de mapas pelos cartógrafos desenharam o já citado Atlas de Nicholas Vallard, em 1547. Sugere ainda que algumas das ilustrações e embelezamentos em "Jave La Grande" podem representar a Austrália. Alguns meios de comunicação durante a divulgação da obra à época de seu lançamento sugeriram, incorrectamente, que o Atlas de Vallard não era muito conhecido, o que só demonstra falta de conhecimento histórico. Jornalistas mal preparados e sites da internet, a começar pelo trágico Vortex, que não acerta uma, vieram trazer a descoberta de mais um mapa, como se essa fosse a chave da questão do descobrimento da Austrália, publicando títulos tão bombásticos quanto imbecis.
Há catorze anos, a conferência “Portugueses na Austrália”, que decorreu no Museu da Ciência, em Coimbra, na sequência da publicação em português do livro “Para Além de Capricórnio”, do Peter Trickett, serviu para enquadrar uma discussão que é tudo menos recente. Francisco Contente Domingues, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e nosso confrade na Academia Portuguesa da História e na Academia de Marinha -- que infelizmente faleceu este mês, apenas com 60 anos -- moderando a mesa redonda que se seguiu ao colóquio referiu: “Chegar em primeiro lugar não tem qualquer importância, até porque isso não é aferível. O importante é chegar lá e lá voltar [… tornando uma terra descoberta num] património civilizacional colectivo”.
Fica claro que não foi agora que se sabe que foi Cristóvão de Mendonça, que era filho segundo de Diogo de Mendonça, 1.º alcaide-mor do Castelo de Mourão, na sua família, último anadel-mor de Besteiros, e de sua mulher Beatriz Soares de Albergaria. Quem efectivamente descobriu a Austrália, em 1522. O navegador, que acabaria por falecer, em Ormuz, em 1532, partiu de Malaca, em 1521, numa expedição dirigida para o Sul das chamadas Índias Orientais, para descobrir as mítica Ilha do Ouro:
"(...) (1522) Armada de Cristovam de Mendonça que foy descobrir a ilha do ouro no ditto tempo.
Item, ho navyo Sam Christovam em que elle vaii.
Item, a caravella Rosayro capitão Pedr'Eanes Francces.
Item, ho bragantym Sant'Antonio capitão Francisco Pereira.
Item, hum parao capitão Gonçalo Homem que he seu e carrega-se a custa dell reii per hordenança do governador que ho asy requereo por ho aver por seu serviço pêra este descobrimento....”.
Os portugueses já navegavam na região e contactavam com os povos de Timor, onde chegaram ainda em 1512, Solor, Flores e de outras ilhas, sobretudo para comprar sândalo, que tinha um importante mercado na China.
O mapa que agora aparece nos sites de fantasias históricos, na NET, e estudado por Peter Trickett, não é um mapa de navegação, e só pode ter sido feito em Lisboa, na Ribeira das Naus, a partir de mapas preparatórios fornecidos pelo Estado da Índia, que era governado, quando a notícia chegou a Cochim, por Vasco da Gama.
Como muitas das legendas destes mapas estão em língua francesa, língua portuguesa ou um português galicizado, prova-se que os seus autores trabalharam sobre fontes portuguesas actualmente inexistentes, como por exemplo as que então havia na Casa da Guiné e da Mina e na Casa da Índia, em Lisboa.
Por outro lado, o desinteresse dos portugueses pela Austrália nada teve a ver com o anti-meridiano de Tordesilhas, que atravessa as Ilhas Molucas, mas pelo facto dos aborígenes não terem nada para vender, pois viviam como na Idade da Pedra, nem nada para comprar. A não exploração da Austrália, por falta de interesse económico, foi o mesmo que tivemos pelo Brasil, para onde só mandámos gentes, para se estabelecer, em 1535, ou por Madagáscar, que nunca ocupámos.
Pedro Dias