BICO CALADO

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Não, não me vou queixar das queixas dos outros e nem tenciono mandar calar ninguém. Era o que faltava que – logo eu que raramente me calo – sucumbisse a uns poucos comentários rabugentos nas redes sociais.

Há, deles, pispirretas, maçadores, ligeiramente desagradáveis, mas, ainda assim, próprios de quem não desistiu de participar. Bem ou mal-intencionados, tanto me faz, desde que não se calem.

E, por isso, era o que faltava que eu – que não me canso de defender a liberdade de expressão e de penhoradamente agradecer a quem no-la conquistou num Abril ido – me queixasse de quem se mantém vigilante só porque não me agrada a sua opinião.

E até preservo a esperança de que à minha inquietação se junte a daqueles e a de outros, e que, afinal, possamos espicaçar alguns espíritos adormentados, porque, estes sim, exigem cuidado.

Como canta o Sérgio Godinho, “Mais vale ser um cão raivoso/ do que um carneiro/ a dizer que sim ao pastor/ o dia inteiro/ e a dar-lhe de lã e da carne e da vida/ e do traseiro”, ou mesmo “Um caranguejo/ que avança e recua/ e depois solta um bocejo/ e que quando fala só se houve a garganta/ no gargarejo”.

Que nunca a voz doa a quem a puser ao serviço da democracia, que hoje, como antes, continua a precisar do alimento daquela raiva.

Tudo menos calar-lhes o bico, como terá acontecido na RTP.

Quem acompanhou os rumores de censura ao programa ‘Sexta às 9’, quando foi anunciada a sua suspensão temporária por altura da campanha para as últimas eleições, aguardou, expectante, o seu regresso.

E a verdade é que a reportagem, que, embora estivesse pronta desde Setembro, só agora foi exibida, veio denunciar as suspeitas existentes sobre o contrato de exploração de lítio assinado pelo Governo com a Lusorecursos relativo à instalação de uma mina de lítio a céu aberto em Montalegre – a tal cratera com 300 metros de profundidade e 800 metros de diâmetro, que já motivou dois boicotes às urnas.

Àquela empresa, que fora constituída apenas 3 dias antes e não tinha quaisquer direitos de prospecção, foi garantida uma licença definitiva de 35 anos, sem nenhum estudo prévio de impacto ambiental. E, para compor o ramalhete, Jorge Costa Oliveira, ex-secretário de Estado, acusado no caso ‘Galpgate’ por recebimento indevido de vantagem, que se tornara consultor da dita empresa antes da assinatura daquele contrato, admitiu ter tido conversas informais com os seus ex-colegas de governo a propósito da respectiva licença. Mais, por coincidência (ou talvez não), o seu ex-chefe de gabinete terá passado, entretanto, a chefe de gabinete do Ministro Pedro Siza Vieira.

O negócio desta concessão mineira, que já está a ser investigado pela Justiça, tresanda a esturro. E o facto de Maria Flor Pedroso, que ditou a suspensão temporária do programa, ser prima do Primeiro-Ministro e ter sido nomeada pela Administração durante o seu mandato governamental, também não ajuda a afastar a má memória do reinado de Sócrates.

Pior ainda foi a reacção do Secretário de Estado, João Galamba, que, sem pitada de sentido de Estado, se mostrou no Facebook em modo ‘Sem Moderação’, acusando a jornalista de estar a mentir. Não perdeu pela demora, já que, em pronta resposta, Sandra Felgueiras lhe recomendou respeito pelo seu trabalho, cuja seriedade afiançou, e lhe deixou um recado final: “Como sério espero que seja o seu {trabalho}”.

Em suma, não se calará (disse ela). A não ser que a suspendam de novo (digo eu) …

E volto às palavras do Sérgio, desta vez em ‘Bico Calado’, que aconselham atenção a vestes e vozes enganadoras: “Se eu fosse mal educado/ dizia que é muito feio/ construir o socialismo/ com fascistas de permeio./ Por falar em socialismo/ lá porque alguém o apregoa/ não quer dizer que não esteja/ a dizer coisas à toa”.

Assim, a quem, como eu, não gostar de calar o bico e nem tiver especial jeito para se fingir Carneiro, Caranguejo ou “Sardinha/ metida, entalada na lata/ educadinha/ pronta a ser comida, engolida, digerida/ e cagadinha”, contentam os Cães Raivosos.

Filomena Girão

Advogada