CARRILHÕES DO TEMPO

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Conheço bem aquele palácio…

Ali permaneci há cinquenta anos atrás, enclausurado sem culpa formada nem indiciação de qualquer crime, durante seis meses, na sua ala militar. Foi preciso que passasse tanto tempo para ouvir pela primeira vez os seus famosos carrilhões.

Da boca emborcada dos sinos pareciam golfar silfos fátuos que rodopiavam em catadupa, como espíritos inspiradores dos artistas, modelando as nuvens com as suas vibrações, transformando-as em figuras fantasmagóricas ao sabor da imaginação de quem assistia ao concerto de carrilhões que recentemente numa tarde de domingo, decorreu em Mafra.

Em turbilhão, passei em revista, mentalmente, muito daquilo que a imponência do edifício já me fazia pensar quando lá estive na juventude. Quantos milhares de operários tiveram que dar o seu trabalho quase escravo e alguns a sua vida, para fazer nascer e crescer uma obra pretensamente grandiosa para simples prazer e pura vaidade do monarca que quis, com a riqueza arrebanhada no Brasil e em África, imitar, à escala nacional, Luis XIV e o Palácio de Versalhes?

Era impossível não imaginar Blimunda e o Sete-Sóis de que Saramago viria a falar anos mais tarde no seu romance Memorial do Convento. Quase receando que Blimunda me lesse os pensamentos, como era sua arte, se ali estivesse. Quase imaginando o Sete-Sóis a ser executado pela Inquisição por crime que não cometera.

E os silfos em frenéticas correrias, cabriolando em concêntricas sonoridades, invadiam-me o cérebro, incentivavam-me a testemunhar a injustiça da riqueza e do poder,  exercida sobre aqueles que  ajudam a criar uma e a sustentar o outro, mal se alimentando das migalhas da mesa farta dos seus algozes.

Poderá dizer-se que é tempo passado. Que não volta!

Infelizmente, não estou seguro disso…

Rui Felicio