Coisas que só o coração pode entender

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Sou filha de um típico casal de classe média: a minha mãe foi professora primária com todos os tiques das educadoras de petizes (cuidadora, paternalista, e até bastante mandona) e o meu pai exerceu funções comerciais, primeiro como empregado de balcão, mais tarde, por sua própria conta, como o típico faz-tudo de que só os empresários portugueses são capazes, e finalmente como gerente comercial, com os tiques de quem conhece o valor das relações humanas (sempre atento às necessidades de quem o rodeia e até bastante lamechas por via das traições de um coração feito de manteiga).

Lá em casa, até à sua precoce morte, viveu também a minha avó materna, uma mulher com uma coragem e uma determinação invulgares que cedo me fez crer no poder da vontade (confiável e valente, muito longe do estereótipo das outras avós).

Da minha avó, pelos genes ou pelo convívio, os meus pais herdaram um certo carácter metediço que teimam em rejeitar. Faz parte deles (e de mim também, porventura) e dá-me razão para me insurgir, exigindo o tratamento próprio de uma mulher adulta, autónoma e independente, ao mesmo tempo que me rio por me saber assim também, abelhuda q.b., a querer saber das alegrias e essencialmente das tristezas das minhas crias.

Cresci com um irmão quase gémeo (separados por um ano que não posso lembrar) e, quase uma década mais tarde, acompanhada por uma irmã serôdia que, durante anos, mais se assemelhou a uma filha precoce. Hoje, vamos sendo pais e filhos uns dos outros, conforme a sorte dita, com a certeza de que (comigo concordando ou discordando) eles não me faltam quando deles preciso.

Fui sempre uma miúda com pêlo na venta e, por isso, como não podia deixar de ser, a infância feliz desembocou numa adolescência efervescente.

Foi bom, muito bom, e não hesito em afirmar que viveria tudo outra vez, com a ingenuidade e a ignorância de antes, iguais frustrações, angústias e medos, porque até estes foram poucos e leves (sei-o hoje), na justa medida da minha capacidade para com eles crescer e me fortalecer.

Mas, no meio da tipicidade lá de casa, sempre reinaram diferenças cujo mérito demorei a reconhecer. Os meus pais praticavam um feminismo que curiosamente nunca apregoaram e lá em casa a coisa era mesmo paritária. Ainda é, lá em casa ordenam ambos, de facto, e ai de quem ignore tal facto…

No sábado passado, na RTP3, no programa Fronteiras XXI, discutiu-se a situação das mulheres em Portugal, a partir de estatísticas que mostram que por cá ainda é preciso mudar modos e mentalidades.

Estranhamente, por ali, a assistência era fundamentalmente feminina e houve até quem dissesse que precisava de ser mais bem paga para contratar uma empregada (mulher, claro!) com quem pudesse dividir as tarefas domésticas.

Não sou este tipo de feminista, porventura porque sou uma afortunada, já que, sem parangonas ou manifestações, fui ensinada pelo exemplo a não ter medo de ser mulher. E a verdade é que nunca me senti excluída, prejudicada ou menorizada em função da minha condição feminina. Hei-de ter tido sorte, mas talvez algum mérito também, tão-só porque aquele panorama de menoridade não é sequer uma hipótese para mim e essa certeza sempre me fez tomar as rédeas da minha vida e aguentar-lhe os balanços.

É esse o legado que quero passar à minha filha (e aos meus filhos, já agora, porque os homens são essenciais nesta questão da paridade), para que ela saiba que a diferença de género (como tantas outras) só pode enriquecê-la e nunca fragilizá-la.

E, afinal, feitas as contas, talvez os meus pais não sejam um casal tão típico quanto parece. Que sorte a minha, por isso e tantas coisas mais… coisas que só o coração pode entender, como dizia o Jobim.

Os meus pais comemoraram há pouco 53 anos de casados e eu sinto-me muito grata por aquela união que me fez assim. Digo-lho bastas vezes, mas, ainda assim, deveria dizê-lo mais alto e mais amiúde. Escrevo-o hoje, na esperança de que este pequeno texto lhes beije amorosamente a alma.

Imagem retirada da net

Filomena Girão

Advogada