CRÓNICAS DA PESTE MANSA
Um derriço de Alcântara
Vai-me um silêncio tedioso na cabeça. Vejo-me a chocalhá-la, como se ela fosse um mealheiro de barro com uma fenda num dos lados para enfiar as moedas. Vou fingindo que o mealheiro tem moedas e que "está tudo bem", pois é este o mote preferido dos "media".
Ontem fui a Alcântara, visitar um derriço que arranjei por lá. Entrei no táxi de luvas descartáveis e de máscara cirúrgica, fazendo um ar próximo do que o Batman ostentava quando combateu contra a Hidra de Lerna. O motorista, coitado, fez questão de desinfectar as mãos à minha frente com aquele gel alcoólico que agora puseram em voga. A seguir, claro, fartou-se de se queixar, no trajecto para Alcântara : que era uma desgraça, que andava a guiar por Lisboa fora para conseguir abichar quatro clientes ao longo de todo o dia, que do preço das corrridas só dez por cento eram para ele, que tinha a mulher no desemprego e que lá por casa existiam mais duas bocas para alimentar, uma a da Rosália, de onze anos já feitos, outra a do Pedrito, de cinco anos e com lúpus. Depois disso deu um suspiro muito fundo e abanou a cabeça para um lado e para o outro, como uma bússula em dificuldades para encontrar o norte. Onde é que já se viu uma bússula com o ponteiro aos saltos a conduzir um mealheiro de barro a Alcântara, para a dose necessária de ocasionais carinhos ? Vê-se agora, agorinha, ora essa, que o mundo todo mudou, agora enfrascado em gel alcoolizado e embalado em papel de desassossego. Depois, o motorista disse "é aqui" e perguntou-me se eu queria desinfectar as mãos, que estivesse à vontade porque o gel era por conta do patrão e ainda que o patrão não tinha a mulher desempregada e os filhos dele, patrão, já eram ambos casados e estabelecidos. Para fazer a vontade ao motorista, peguei no frasco de plástico e derramei sobre as luvas um breve jacto de gel, esfregando uma na outra as forras das mãos. A bússula sorriu amareladamente e deveria ter-se sentido como um escuteiro quando acaba de praticar a primeira boa acção do dia. Paguei-lhe, recebi e troco e cumpri seguidamente a minha boa acção quotidiana, em homenagem à mulher desempregada, à Rosália, ao Pedrito com maleitas e à bússula divagante pelas avenidas capitais. Foi a minha vez de lhe pedir que esticasse para trás uma das mãos, onde deixei a ridicularia de um euro e setenta cêntimos, ou seja, a importância excedente do meu cardápio de Baden-Powell em fim de estação.
O meu derriço de Alcântara era coisa recentíssima e deveras agradável, uma vez que, embora cinquentona, tinha feito duas plásticas de correcção das mamas e vários exercícios gímnicos para desenvolver os glúteos. Mandou-me entrar, com um sorriso cativante. O apartamento, embora minúsculo, estava decorado com algum requinte, com a mesa de vidro rectangular , as cadeiras em acrílico transparente e um longo sofá branco, em tê, onde se acomodavam umas quantas almofadas em forma de coração, de fabrico doméstico. O meu derriço sentou-me na cozinha, imagnei eu que para me pôr à vontade. A porta da cozinha abria para um pátio airoso, onde se encontravam duas espreguiçadeiras e uns arrumos estreitos, com casotas para dois cães. Os cães manifestaram-me a sua simpatia através do espenejamento da pelagem castanha clara e da investida amigável às minhas pernas, num alvoroto de bichos bem alimentados. O derriço acabava de grelhar dois linguados e tivera na confecção do repasto o apoio da Nandinha, amiga de infância, mas muito mais fanada porque não lhe sobrara espórtula para a correcção das mamas nem para o ginásio onde se avolumam glúteos. Nos breves instantes em que falei com a Nandinha, que se aprestava para se ir embora "para nos deixar à vontade", soube que também tinha ficado desempregada. Andara a vender cartões de crédito por conta de uma instituição bancária, que até lhe proporcionara viagens de avião para o arquipélago dos Açores e para a Madeira, com reserva de hotel de très estrelas. "Bons tempos, bons tempos", dissera a Nandinha com um sorriso triste. E eu não consegui dizer-lhe outra coisa senão a vulgaridade de um "imagino que sim", sem outro tempero ou condimento de conforto. O meu derriço disse-me depois que a Nandinha era afectada pela desgraça de gostar de homens mais novos, que também lhe davam ordem de despejo, nos mesmos moldes da que recebera por parte do tal banco, quando acabavam por se desencantar com as mamas dela, já um pouco bambas, e com a ausência lamentável de glúteos desenvolvidos.
O nosso almoço, agora a sós, correu muito bem. Eu levara uma garrafa de espumante "Murganheira", que foi ingurgitada por ambos, aos golinhos, no decurso do labor aplicado à ingestão dos linguados grelhados. O meu derriço contou-me que tinha tido dois salões de beleza em hotéis de luxo, nada que se parecesse com os três estrelas da Nandinha. Confidenciou-me ainda que o amor da sua vida fora um CEO de uma grande empresa privada e que tanto a empresa como o CEO tinham enriquecido competentemente, através do saque descarado das empreitadas "ao serviço do Estado". Também me disse que os casos de ministros reticentes e de pruridos moralistas eram resolvidos através da oferta de obras de arte, compradas no estrangeiro para garantir a discreção. Confidenciou-me ainda que o tal CEO a levara, por caminho de ferro internacional, duas vezes à Suiça e outras tantas a Paris. Mas as idas a Paris já foram feita de avião. " E por que razão fora o avião descartado nas viagen à Suiça ?" perguntei eu, com a ingenuidade típica dos pobres de espírito. " Porque ", explicou ela, " as viagens ferroviárias eram muito mais seguras e não estavam sujeitas a registos e a inspecções de bagagens. Desta maneira, a mala-baú de couro onde se faziam transportar as dezenas de quilos de notas de banco chegavam ao seu destino helvético em perfeitas condições de segurança". Quando acabou de expor tudo isto, o derriço riu-se com alguma raiva. Raiva, notei eu, mas não tive a certeza que não fosse também nostalgia.
O que uma pessoa fica a saber quando empalma um derriço nascido em Alcântara mas internacionalizado por um CEO rico e devotado à benemerência pública, dava para encher todos os volumes da Enciclopédia Britânica.
Eram seis horas da tarde quando o derriço me deu a entender que estava novamente à espera da Nandinha e que a minha presença já não era desejada. Detalhou ainda que a Nandinha se faria acompanhar do último namorado, um protésico mais novo, para desgraça sua, que certamente se desencantaria no momento adequado. Pedi ao meu derriço que me chamasse um táxi. Ela assim fez, confortando-me com um beijo de despedida e com a promessa de que estaria mais disponível "por um destes dias".
O taxista do regresso não meteu conversa. Era castanho, de bigode e o seu estilo resumia-se ao silêncio mais feroz. Também desinfectou as mãos na altura da chegada, mas não se dignou partilhar comigo a mais insignificante porção de gel. Não lhe dei sequer um cêntimo de gorjeta. Obviamente.
Imagem retirada da net
Amadeu Homem