Mandela: a liberdade e o perdão

 

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Em mais uma homenagem da Academia das Ciências a Nelson Mandela, no
passado dia 20 de Novembro, também participei com uma comunicação, de
que fica aí o essencial.

1. Há uma experiência de fundo: o ser humano não é objecto, coisa.
Olhamos para as coisas como um “isso”, mas olhamos para os seres
humanos como um “alguém”. Alguém que é um “tu” como eu e, ao mesmo
tempo, um tu que não sou eu: outro eu e um eu outro, formando um
“nós”. O outro, no seu rosto e olhar, impõe-se-me como um “alguém
corporal”, a visibilidade de uma interioridade inacessível que se
mostra e impõe.

A experiência radical de não se ser coisa dá-se na consciência da
liberdade. Cada um, cada uma, faz a experiência originária de ser
dado, dada, a si mesmo, a si mesma, experiência que se explicita na
consciência de autoposse. Somos senhores e donos de nós. Muito cedo, a
criança é capaz de dizer ao pai ou à mãe: não és minha dona, meu dono.
Pertenço, antes de mais, a mim próprio, a mim própria.

Claro que a liberdade não é demonstrável. Aliás, se o fosse, não seria
liberdade, mas coisa. A liberdade apresenta-se nesta experiência de
autoposse e, consequentemente, na experiência de responsabilidade:
respondo por mim e pelo que faço. Dada a neotenia — vimos ao mundo por
fazer —, temos pela frente a tarefa essencial, constitutiva:
fazermo-nos a nós mesmos, uns com os outros, no mundo. Poder-se-ia
acrescentar que a experiência da liberdade é uma experiência
transcendental: a liberdade afirma-se, mesmo na sua negação. De facto,
se tudo estivesse sob o determinismo, não seria possível colocar a
questão da liberdade e do determinismo enquanto tal.

A liberdade é o fundamento da dignidade humana. Perante alguém livre,
impõe-se o respeito (de respicere: ver e ser visto no mútuo
reconhecimento). Cá está: o ser humano não é coisa, não é meio; por
isso, não tem preço, reflectiu Kant. Embora a liberdade humana seja
finita e sempre em situação, a pessoa pertence ao reino dos fins. A
dignidade co-implica direitos fundamentais, que se impõe reconhecer:
não se trata de concedê-los, mas de reconhecê-los.

Uma vez que o ser humano se tem de fazer a si mesmo — fazendo tudo o
que faz, está a fazer-se a si próprio, de tal modo que o resultado
pode ser uma obra de arte ou um monstro —, está sempre sob a sua
responsabilidade última. Daqui deriva a angústia que sempre nos
acompanha. De tal modo que, como bem viu Dostoievsky, na lenda do
Grande Inquisidor, em Os Irmãos Karamazov, há uma dialéctica
fundamental entre a liberdade e a segurança, estando muitos — a maior
parte? — na disposição de entregar o fardo da liberdade a quem queira
ficar com ele, aproveitando-se disso. Entre a liberdade e a segurança,
muitos preferem a segurança: a segurança da norma, do não risco, do
não ousar.

Em síntese, a liberdade significa autoposse, de tal modo que cada um,
cada uma, pode e tem de tomar decisões no quadro da
realização-de-si-no-mundo-com-os-outros. A liberdade, mesmo se
condicionada e em situação, implica, portanto, não sujeição total aos
determinismos físicos, genéticos, psicológicos ou sócio-culturais. De
facto, depois de todos os condicionamentos físicos, genéticos,
culturais, ainda podemos perguntar: o que vou eu fazer de mim com tudo
isso? Também não é liberdade a pura espontaneidade ou a arbitrariedade
— não é liberdade, por exemplo, fazer pura e simplesmente o que
apetece: paradoxalmente, isso é necessidade —, pois o que a “define” é
a auto-determinação segundo razões, a tomada de decisões racionais,
tendo por critério último a plena realização humana de todos os seres
humanos. Assim, a liberdade é ao mesmo tempo liberdade de: liberdade
de determinismos e constrangimentos que impedem a sua realização, e
liberdade para: liberdade para a realização de valores nos vários
níveis, a começar pelo reconhecimento da liberdade dos outros, pois a
liberdade verdadeira quer liberdades. A liberdade não se limita à
experiência da sua realidade transcendental e interior, pois exige
condições de possibilidade da sua realização concreta nos diferentes
domínios: condições económicas, culturais, políticas...

2. Estive várias vezes na África do Sul, ainda no tempo do apartheid,
da segregação racial. Ainda vi escrita, por exemplo, em bancos de
jardim, ou indicação de praia, nas carruagens dos comboios, a ordem:
“Whites only” (só para brancos). Se pude visitar o Soweto, foi porque
o afável bispo católico de Joanesburgo, que não era racista, pediu ao
pároco negro que me acompanhasse. E fui bem recebido. Mas a segregação
estava sempre presente: nasciam em hospitais para negros, viviam em
bairros exclusivamente de negros, iam à escola só para negros,
levavam-nos a casa em autocarros exclusivamente para negros...

Muitas vezes me perguntei como é que aquela ignomínia iria acabar.
Seria possível, sem um banho de sangue? Porque, ali, era o
intolerável. A pessoa era ferida no mais profundo do seu ser: na sua
infinita dignidade de ser livre e auto-determinar-se.

Foi possível. Pacificamente, abriu-se o caminho para negociações em
ordem à democracia no quadro da coexistência racial e do diálogo. Isso
deveu-se certamente também à inteligência política e humana do
presidente De Klerk, no novo contexto político e geoestratégico criado
pela queda do muro de Berlim. Mas, para evitar a tragédia, o espírito
e a acção de Mandela foram determinantes.

3. Está tudo na sua autobiografia: Long Walk to Freedom. Mandela não
teve nenhuma “iluminação” ou “aparição”, mas a acumulação de ofensas,
de indignidades, despertou nele “ira e rebeldia” e o desejo de
combater o sistema que oprimia o seu povo. “Não houve um dia concreto
em que dissesse: a partir de agora dedicarei as minhas energias à
libertação do meu povo, dei por mim a fazê-lo simplesmente e não podia
agir de outro modo”.

Objectivo da luta? Como se dizia na “Constituição pela Liberdade”,
abolição da discriminação racial e a igualdade de direitos para todos.
Era preciso destruir o apartheid, “a própria encarnação da injustiça”.
Acabou “convertido, por lei, num criminoso”, mas não tinha a menor
dúvida de que a posteridade reivindicaria a sua inocência.

Nestas situações, é legítima a violência até à luta armada? Os
teólogos têm colocado a questão da guerra justa e a licitude do
derrube do governo tirânico. Mandela confessava-se um homem não
violento e explicava que não dependia dos negros renunciar à
violência, mas do Governo; o seu propósito era atacar objectivos
militares, não as pessoas. Apenas procurava a igualdade política e o
princípio de “uma pessoa, um voto”, num Estado unitário sem homelands.

Depois de 27 anos de cárcere, viu Mandela finalmente a liberdade. E o
“milagre” aconteceu. Quis despedir-se dos guardas, agradecendo-lhes
“as suas atenções um a um”. Fora-se convencendo de que, afinal, mesmo
aqueles que o tinham mantido na prisão durante vinte e sete anos e
meio “eram essencialmente humanos”. Mandela confessava-se
convictamente cristão. Esta sua condição terá sido decisiva para
evitar o ódio e o ressentimento — as “paixões tristes”, como escreveu
Espinosa. “Queria que toda a África do Sul visse que amava os meus
inimigos, embora odiasse o sistema que nos tinha enfrentado.” Manteve
a liberdade maior: o domínio de si. Afinal, tudo está naquele gesto de
apertar a mão aos carcereiros e convidá-los para o banquete de
inauguração da nova presidência da "nação arco-íris".

Mandela percebera que os seus carcereiros eram seres humanos habitados
pelo medo. Ora, o medo é do pior que há. O medo tolhe a razão e a
capacidade de pensar. É preciso ter medo de quem tem medo, de tal modo
que a primeira libertação tem de ser a libertação do medo. Também e
sobretudo no universo da religião. Aterrados pelo medo de Deus, homens
e mulheres que se julgam religiosos caminham fatalmente para desgraças
tenebrosas. Por isso, a Bíblia é atravessada pela compreensão
histórica lenta, que culmina em Jesus, através da sua experiência,
palavras e acções, de que a única tentativa de "definir" Deus é (está
em São João): Ho theós agapê estín (Deus é amor incondicional, Deus é
Força infinita de criar e só sabe amar).

Como era cristão, Mandela sabia que se deve perdoar aos inimigos. Pelo
Evangelho, também sabia que os romanos enquanto potência de ocupação
podiam obrigar um judeu a transportar a bagagem na distância de uma
milha, sendo neste contexto que se percebe o que Jesus diz: "Faz uma
segunda milha de livre vontade." Talvez o romano começasse a
conversar, e quem sabe se não acabariam por beber um copo juntos? A
reconciliação, a solução pacífica dos conflitos é preferível à
violência e à guerra. E Jesus, do alto da cruz, rezou: "Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.

De qualquer modo, o perdão é um milagre, também em política. Jürgen
Habermas, agnóstico, talvez o maior filósofo vivo e o mais influente,
que quereria uma filosofia que herdasse, num processo de secularização
mediante a razão comunicativa, os conteúdos semânticos da religião e a
sua força, reconheceu que há um resto na religião não herdável pela
simples razão. Disse-o num discurso famoso, por ocasião da recepção do
prémio da paz dos livreiros alemães e já depois dos acontecimentos
trágicos do 11 de Setembro de 2001. Esse resto tem a ver nomeadamente
com o drama do perdão.

      O perdão, em última análise, já não pertence à ordem do jurídico
nem do político. No perdão do imperdoável, é a razão humana enquanto
capacidade do cálculo que é superada, pois nem o algoz tem direito ao
perdão nem a vítima é obrigada a perdoar. Como escreveu o filósofo
Jacques Derrida, perdoar o imperdoável aponta para algo que está para
lá da imanência, "qualquer coisa de trans-humano": "na ideia do perdão
há a da transcendência", pois realiza-se um gesto que já não está ao
nível da imanência humana. Aí, começa o domínio da religião. "A partir
desta ideia do impossível, deste ‘desejo’ ou deste ‘pensamento’ do
perdão, deste pensamento do desconhecido e do transfenomenal, pode
muito bem tentar-se uma génese do religioso."

4. Como escreveu Lídia Jorge, “Não há livro de instruções para salvar
a vida. Só a literatura se aproxima desse imenso livro.” Isto
significa que a liberdade leva consigo uma luta e uma história sem fim
de libertação. Como insiste São Paulo, “foi para a liberdade que
Cristo nos libertou”. Na presente situação do mundo, esta luta tem
três exigências essenciais. Uma é a da libertação interior:
conquistar-se a si próprio, naquele processo que as religiões chamam
de conversão ao melhor de si e ao amor. Depois, como sublinha o
teólogo Hans Küng, “não haverá paz entre as nações sem paz entre as
religiões”, o que implica a urgência do diálogo inter-religioso e
intercultural, colocando no centro o interesse da realização plena de
todos os homens e mulheres enquanto pessoas. Para lá de outros
pilares, este diálogo implica a leitura histórico-crítica dos textos
sagrados, o Estado laico, separando Igreja e Estado como garantia da
liberdade religiosa (a laicidade, que não se confunde com o laicismo,
é uma conquista histórica da Humanidade) e um projecto de ética
mundial. Num mundo globalizado, impõe-se terminar com a cisão entre,
por um lado, os chamados mercados, poderes fácticos globais, e, por
outro, a política, da ordem do dever-ser, ainda local ou, quando
muito, regional. Algo que se aproxime de uma “governança” global, com
instâncias políticas globais, para uma ordem económico-financeira
justa e equitativa, é essencial, se se quiser evitar o abismo e a
catástrofe.

5. É neste contexto que há muito propugno algo de parecido com um
Plano Marshall para a África. Sob a protecção de “São” Nelson Mandela,
porque, como diz o Professor Adriano Moreira, Mandela não é um santo
canonizado pela Igreja, mas é um santo da Humanidade.

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

in DN 01.12.2018

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