O MEDO

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Os amigos que me conhecem – e, sendo amigos, eles conhecem-me – sabem que, entre as minhas características, se conta uma assaz desagradável: vejo, ainda que muitas vezes sem o conseguir dizer claramente, as tendências históricas (quer dizer, as tendências espirituais e filosóficas, pois outras não há das quais se possa dizer que são realmente históricas, históricas no sentido forte e próprio da palavra) do Mundo. Sou, quanto a este ponto, uma espécie de émulo rasteiro de Houellebecq, embora sem a capacidade romanesca e a inteligência detalhada do escritor francês. Porém, dentro dos limites da minha visão grosseira, lá vou, apesar de tudo, enxergando alguma coisa. "Através de um vidro, obscuramente,” como disse Paulo.

[Ao dizer isto não me gabo ou ponho em bicos de pés. Longe disso. Como eu há muita gente que sente estas coisas tão bem ou até melhor do que eu, mas que abafa os seus pressentimentos simplesmente porque não deseja ter de olhar de frente a realidade. Talvez por excesso de sensibilidade. A sensibilidade, a moleza, o amor à humanidade, a boa e velha qualidade a que se chama esperança, emudece-as. Eu, que não tenho sensibilidade, não sou mole e tenho um amor enviezado à humanidade, falo. É só isso, e nada mais.]

O que há, para mim, de desagradável nesta tendência para adivinhar é o facto de eu antecipar, no que vejo, a chegada da Morte. Parafraseando Leonard Cohen, "I've seen the future and it is murder." Ai de nós. Tomba sobre o mundo, e vejo-a vir, rápida como a sombra da Lua num eclipse total do Sol, a sombra de um anjo sinistro. As suas asas, imensas e assombrosas, chamam-se humanismo e socialismo; o seu bico de ave de rapina é o niilismo. E as garras das patas do medonho grifo transportam, derramando-os sobre tudo, os venenos da igualdade, da indistinção geral, da aquiescência estúpida, do sectarismo militante, do feminismo alapoado, da mediocridade sistemática, do culto da anti-cultura, da fealdade por sistema. E do medo.

O medo é o olhar do bicho peçonhento que nos come. Não sentis o medo que vai caindo como um líquido pesado sobre as nossas almas? Não tenhais, amigos, por uma vez, vergonha de o dizer: há medo em tudo, há medo até debaixo dos lençóis, quando apagamos a luz e nos preparamos para dormir. O medo é rei, e proclama o seu império como nunca houve outro no universo. Este medo de que falo não é um medo qualquer: é o Medo absoluto, o medo ingrediente da realidade, o medo matriz, o medo que nos fitou por vez primeira na antiga União Soviética (ou talvez no terror jacobino da revolução de 1789) e que Mao Tsé-Tung e seus vizinhos e discípulos apuraram. O medo como estrutura ontológica. O medo que manda calar até a sua própria fonte.

Este Medo, para se tornar suportável a nós, seus servos, tece à nossa volta, e dentro de nós, um abismo de vazio, a narcose do Nada. Este Nada, que se esforça por não nos assustar, oferece-se, ao olhar distraído, cheio de coisas, pleno de proclamações, de direitos, de oferendas coloridas, de mercadorias reluzentes. Oh, é, na aparência, um mundo de gadgets para o corpo e para a mente, um bazar de promessas de felicidade, mas não vos deixeis enganar, porque é o Vazio gerado pelo Medo. E eu creio que vós não vos deixais enganar. Quem o pode ignorar, a este Medo que reina com uma mão fechada, esmagadora, intolerável?

O Medo parece invencível. Poderemos um dia vencê-lo? Acabará alguma vez? Sim, amigos, um dia acabará. Mas não sei quando. Só sei que o Herói capaz de o derrotar ainda não nasceu. E a figura deste Herói está ainda envolta em bruma, ou seja, na ofuscante Luz que o nosso pobre olhar não logra penetrar.

Eu acredito.

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Outono

As folhas caem, caem como na lonjura,

Como se murchassem jardins no céu distante;

Caem num gesto que se nega e erra.

E cai pelas noites a nossa densa Terra

Com as estrelas todas na solidão escura.

Todos nós caímos. Cai esta mão branca.

E as outras caem: por onde quer que se olhe.

Porém Um há que nas suas mãos nos colhe

E com infinita doçura esta queda estanca.

Rainer Maria Rilke, 11/09/1902, Paris

José Costa Pinto

 

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