O SENHOR PUTIN E OS "INTELECTUAIS ORGÂNICOS"

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O Senhor Putin rompeu um dos paradigmas do que consideramos ser a civilização ocidental ao fazer uma guerra segundo os processos tradicionais da orientalidade. Queremos com isto dizer que o Ocidente, desde os tempos de Carlos Magno, procurou normativizar a guerra e delimitar os seus danos. Para isto, tratou inicialmente de acabar com a prática de matar todas as populações vencidas, sem nenhuma excepção de idade, sexo ou diminuição física ou psicológica. Ou seja, foi-se moderando a "barbaridade"; num segundo momento, o Ocidente, desenvolvendo os preceitos jurídicos que tinha recebido dos tratadistas romanos, tratou de retirar à guerra a sua condição de desgraça inesperada. Isto é de tal modo verdade que tanto a primeira como a segunda guerra mundiais foram precedidas de actos diplomáticos de "declaração de guerra" ; por último, o Ocidente submeteu a guerra a um conjunto de princípios convencionais, estabelecendo a tipificação dos "crimes de guerra" e do "genocídio gratuito".

Tudo isto foi tripudiado pelo Senhor Putin, o que era de esperar, pois nada disto é por ele sentido como uma parte ínsita da civilização oriental à qual pertence. Essa civilização é a da autocracia pura e dura, a dos tempos de Ivan, o Terrível e dos empalamentos dos chefes guerreiros inimigos. O Senhor Putin é. muito simplesmente, uma excrescência do barbarismo e nunca poderá ser outra coisa.

Recordemos que a Federação russa, através das palavras do Senhor Putin, fez da mentira mais descarada uma táctica de guerra e não só não declarou previamente guerra à Ucrânia como disse não estar no seu propósito ou vontade a intenção de invadir os territórios vizinhos. Depois disto, encetou uma guerra sem os meios de contenção elementares. A guerra para o Senhor Putin é uma guerra travada "à oriental" , ou seja, de acordo com o velho dito de Átila, segundo o qual nem uma erva iria crescer , por onde pudessem passar os cascos dos seus cavalos. Por isso, a guerra da Ucrânia, apresentada aos russos e ao resto do mundo como uma "operação militar especial", consistiu e consiste num puro e simples exercício de devastação sistemática, ao abrigo de uma estratégia de puro terror. Que nem um só edifício fique de pé, haja ou não seres humanos vivos no interior - eis aqui a regra áurea com que o Senhor Putin e os seus generais fazem a guerra.

Isto vem criando progressivamente no Ocidente aquilo que Hannah Arendt designou por "banalização do Mal" , por mais horrendo que ele se possa apresentar. Vemos e ouvimos hoje um conjunto de "intelectuais orgânicos" que mandaram às urtigas um dos pilares em que assenta a nossa forma de viver : o direito à indignação perante o que é objectivamente horrendo. Este "intelectual orgânico" está a ser habituado a reagir " à oriental", naturalizando e achando normal tudo o que de revoltante e de repulsivo lhe possa ser apresentado. Perante cidades inteiras arrasadas, este especioso intelectual irá circunvagar o seu modo de olhar, em tudo similar àquele que um Nero - um dos imperadores romanos mais orientalizados - lançou a Roma, quando a mandou incendiar. E também aqui a proximidade casuística é notória: do mesmo modo que Nero imputou o incêndio aos cristãos, assim o Senhor Putin e os seus seguidores atribuíram a autoria moral das ferocidades ... aos nazis ! Perante uma criança de oito anos ou menos com as tripas na mão, o "intelectual orgânico" ocidental, imerso nas águas refundadoras da orientalidade, acabará por dizer: " é aborrecido" e continuará a julgar-se uma potência intelectual moralizadora.

Claro que esta "banalização do Mal", esta trivialização do horror conhece por parte do "intelectual orgânico" uma auto-justificação. Eles tiveram de encontrar uma Entidade maléfica a partir da qual operam a naturalização de tudo. Essa Entidade chama-se Estados Unidos da América, com a sua adjacência militar, que é a NATO.

De tal modo que o horrendo, o grotesco do inaceitável, o tal tripúdio sobre os mínimos de decência são todos sujeitos à rasoira comparativa, que lhes dirá ( para os tranquilizar ) : " Pois é , isto é chato. Mas houve Guantánamo, mas houve o Vietname, mas existiu a invasão do Iraque". Desta sorte, o "intelectual orgânico" já se encontra devidamente preparado para enlamear toda a Civilização à qual pertence.

A verdade nua e crua é que há apenas umas vagas aproximações. Os políticos ocidentais, que se saiba, não têm o hábito de mandar envenenar os adversários e contraditores políticos: isso aconteceu na época dos Bórgias. António Costa não mandará envenenar ou balear ou esfaquear o Senhor Montenegro; e não irá produzir um "ukaze", encerrando o jornal " O Diabo" ; e , embora se saiba que tem mais de que uma casa, não mandou construir um palácio das Mil e Uma Noites, sonegando-o ao conhecimento da população ; e ainda não constou que tenha estábulos com cavalos árabes ...

Nesta universal abdicação de valores essenciais, devidamente acarinhada por meis dúzia de bem-pensantes, já pouco sobra. Continuar hoje a afirmar que a Ucrânia foi invadida para a "desnazificar" e para a "desmilitarizar" é a prova completa do definhamento da clareza do raciocínio. Isso poderia dar margem a que a vizinha Espanha nos pudesse invadir, ao abrigo da delirante ideia de que existem entre nós bastantes votantes do "Chega", que se alçapremou à condição de terceiro partido português. Claro que fica sempre de reserva o argumentário dos tempos das fábulas de Esopo e La Fontaine: se não foste tu o nazi, então deveria ter sido o teu pai ou o teu avoengo ... 

Amadeu Homem