Uma Primeira Entrevista
Quando proponho a Luís Gil Torga esta entrevista, num restaurante de Benfica, em Lisboa, nenhum dos dois sabe se o Jornal vai publicá-la. Mas eu arrisco, e enviarei o resultado final para o Jornal, na esperança de que sim. Luís, amavelmente, cede e concorda, com a única exigência de não se abordarem questões estritamente pessoais. Completamente de acordo. E, durante um bom trio de horas, depois de uma bela cabeça de corvina, cozida, conversámos e brincámos, divertidos, a falar de algo de que ambos gostamos, como se de dois heterónimos de um único Autor se tratassem. E foi muito divertido.
[E foi o resultado, parte dele aqui partilhado, magnífico]
Jorge Sá – Penso que o Luís nunca foi entrevistado, enquanto Autor… Também, sei que não se considera um Escritor porque entende que não o é, embora o sendo, e porque não vive da escrita. Obrigado pela oportunidade e pelo “furo” que me dá e ao Jornal. Mas, explique-me lá isso: é, ou não, um Escritor? E como nasce o seu vício pela escrita, você que é licenciado em Engenharia e, pelo menos, também Técnico Superior de Segurança no Trabalho, Nível VI? E esse seu heterónimo, deixe-me dizer-lhe, tem “pedigree”… Como surgiu?
[Luís, há muito que não fuma nem bebe bebidas brancas, ao contrário de mim: durante a conversa, após um almoço num restaurante que, por acaso, é do agrado dos dois há décadas, acendo cigarrilha atrás de cigarrilha e bebo um bom par de “caipirinhas” numa esplanada em frente a uma imponente árvore com os arbustos timidamente revoltos, apesar da advertência estatal de ser o tabaco prejudicial para a saúde]
Luís Gil Torga – Não, não sou Escritor… Apenas um Autor… Tenho algum jeito para brincar com as palavras, registando-as!... Só isso… Nasce connosco… Digo-o diversas vezes, inspirado num dos meus preferidos: começa por acaso, desenvolve-se por gosto e termina tornando-se um vício!... E assim é a vida no difícil mundo da escrita, sendo-se, ou não, um Autor “agarrado”… Quanto ao heterónimo, é fácil de explicar: foi escolhido para participar nuns jogos florais de um determinado município, tinha eu treze anos de idade… O número do Eusébio no mundial de 1966, também…
[Risos e Risos]
E, na altura, os escritores que estava a ler eram Camões, Vicente e Miguel… Aliás, desde que o li pela primeira vez, Miguel faz parte dos meus preferidos… Para além disso os meus progenitores são oriundos da região de Trás-Os-Montes e Alto Douro e, em Angola, de onde sou natural, a última rua onde habitei antes da ponte aérea que auxiliou os retornados (e não só) chamava-se… Rua dos Transmontanos… E Miguel, isto é, Adolfo Rocha, como sabe, é natural de São Martinho de Anta, um lugar magnífico de Trás-Os-Montes…
Jorge Sá – Viveu a Guerra Colonial, portanto… A Guerra deixou-lhe marcas? Isso reflecte-se na sua escrita, nos seus textos, nas suas Obras? E, já agora, como interpreta o que se está a passar na sua Angola natal?
Luís Gil Torga – Eu escrevo de acordo com as múltiplas vivências que vivi nos vários mundos (in)civilizados por onde passei, de acordo com as influências dos sons e estórias que ouvi, de acordo com a beleza do que diversos escritores registam nas páginas dos magníficos livros que tenho o privilégio de ler. Retiro da diversidade desses momentos (vividos, ouvidos e lidos) frutos com paladares diversos, sementes sãs, irritações múltiplas que contribuem para a sensibilidade e necessidade que me incentivam a registar os meus “batiques escritos”. Angola, apesar de eu ser angolano, rejeitou-me como angolano... Procuro não me informar sobre o que se passa em Angola, apesar de ser impossível estar-se permanentemente indiferente!... Ali, é minha convicção, vira-o-disco-e-toca-o-mesmo e assim será por longo tempo!...
Jorge Sá – Como assim?...
Luís Gil Torga – Penso que é claro que eu sou branco! Tentei, por diversas vezes, recorrendo a um ou outro pressuposto amigo, e até ao consulado em Alcântara, solicitar o meu direito a usufruir de um passaporte angolano!... Eu nasci em Angola, entre brancos, pretos, mulatos, mestiços, tudo o que aquela terra determinou parir… Uma terra absolutamente incomparável com qualquer outra do mundo, tão fofo, rico e bem-cheiroso que é o solo, que transmite odores inigualáveis…
Jorge Sá – Deixe-me interromper: nunca renunciou a sua terra?...
Luís Gil Torga – Como o poderia fazer? Apesar de ser um dos locais mais corruptos e caros do mundo, aquela terra, aquele continente… Como renunciar? Como dizer ao mundo que o mundo onde nascemos não é o nosso mundo? Ali, naquele continente, perto do lugar onde nasci, está o berço da patetice, isto é: o berço dos Homens… E depois, é fácil explicar: eu sou angolano, mas Angola não quer que eu seja angolano, alegando que não tenho raízes…
[Luís transpira desassossego e nostalgia e, imagine-se, pede-me para parar por uns instantes de fumar, por estar eu como que a acordar o seu vício anestesiado]
Jorge Sá – Como já lhe confidenciei, estou sempre ansioso por ler um novo artigo seu, fundamentalmente pelo tipo de humor a que recorre, que é do meu agrado. E já reli várias vezes os seus dois livros editados. Qualquer um deles, é minha convicção, está actual, tem potencial literário, mas muito mal aproveitados em termos comerciais. Mas, permita-me, vou esmiuçar um pouco sobre “A Canalha”. O que é que falhou para o livro, que considero ser muito, muito bom, não ter “disparado”?…
Luís Gil Torga – Olhe, deixe-me dizer que é um pouco embaraçoso estar perante quem nos lê e lisonjeia o nosso trabalho invisível!... Não vou fugir à questão: o livro não “disparou” devido ao facto de eu não ser um Autor “agarrado” e à “infelicidade” de ser… português!... Se o livro tivesse sido escrito por um americano e tivesse sido editado na América, evidentemente contextualizado à contemporaneidade americana, aquilo teria vendido, e continuaria a vender, milhões!... Veja: o livro não teve uma revisão como deveria ter tido, uma revisão profissional… Fui eu quem fez a revisão! Como também fui eu mesmo quem escreveu o livro,
[Risos, muitos risos dos dois, enquanto eu aproveito para pedir mais uma “caipirinha”]
a partir de determinada altura eu já não podia ver mais a Obra... Moral da estória: uma revisão de que não me orgulho…
Jorge Sá – Voltaria a rever um livro seu?
Luís Gil Torga – Nunca mais… Nem meu, nem de outro Autor… E jamais voltaria a editar com aquela editora!...
Jorge Sá – Porquê?...
Luís Gil Torga – Infelizmente, percebi a seriedade da rapaziada logo no dia em que fui assinar o contrato de edição: lancei uma casca de banana, a propósito das percentagens e quantidades de vendas estimadas, que pretendi que ficassem contratualizadas… E a Editora Executiva responsável pela edição caiu de chofre e encetou logo uns sorrisos marotos! Mas já era tarde e irreversível, não podia renunciar: eu necessitava de editar, de dar a conhecer o meu trabalho invisível. Contudo, a partir daí, enquanto não rescindi não dormi descansado… O problema foi que mesmo após a rescisão o livro continuou à venda. Tenho provas de direito e de facto. E, consta, ainda hoje se encontra à venda! Sabe, se houvesse um tribunal europeu, ou mundial, para proteger e salvaguardar Direitos de Autor, havia Editoras que passavam a vida a indemnizar os Autores a propósito dos incumprimentos que perpetuam!... É um negócio de milhões, muitos milhões, viver à custa do talento dos outros!...
[Por esta altura, sinto que o empregado se irrita e deixa a garrafa de “crapa”, meia vazia, em cima da mesa, já não são horas de “caipirinhas”, alega]
Jorge Sá – Luís, confidencie lá: quem são os seus favoritos?...
Luís Gil Torga – São alguns!... O Miguel, o Eça, o Zambujal, o Agualusa, o Mia, o Amado, o García Márquez e um americano muito, muito bom, mas não tão bom quanto eu:
[Outra vez risos, muitos risos]
o Kurt Vonnegut, com formação matemática, também…
Jorge Sá – Tem algo no "prelo", para edição a curto prazo?
Luís Gil Torga – Há aí uns miúdos muito bons, e empreendedores, a quem vou entregar um dia destes “O Sorriso das Pétalas Amarelas”, uma colectânea de artigos publicados n` “O Ponney”… Depois, como que parafraseando o Zambujal, logo se vê…
Jorge Sá – Permita-me que lhe coloque, para finalizar, uma questão aparentemente banal: perspectivas para o futuro?
Luís Gil Torga – Não penso no futuro, Jorge!... E, vou dar-lhe uma resposta efectivamente banal: não falo de futebol!...
[Aqui, a risada descontrolou-se, de tanto fartar]
Depois, despedimo-nos. Eu fui para casa enviar a entrevista, resumida, para o Jornal, com a esperança de ser editada. E, também, passei por uma Livraria perto de casa e procurei, em vão, Obras de Kurt Vonnegut e de… Luís Gil Torga. As Obras de um, e de outro, foi-me dito, estão esgotadas!
© Jorge Sá
(Jorge Sá não respeita o AO90)
(Imagem retirada da net)