Assim se cantava na Gândara
Na antevéspera do Natal, estava eu com tio Amilcar de volta de um prato de filhoses, acompanhadas de uma jeropiga que o homem das três mulheres lhe fora levar de presente, quando se começaram a ouvir uns cânticos religiosos, meio arrastados. E logo o meu companheiro me disse serem as mulheres, na capela da Senhora da Agonia, a fazer a Novena ao Menino. Para lá corri, pois há muito que eu tentava fazer a sua recolha ao vivo. Junto à pia da água-benta, ouvi atentamente cada um dos versos que elas repetidamente entoavam, pois não havia homens que primeiramente cantassem e a quem elas respondessem, como devia ser feito. Uma vez cá fora, abeirei-me das devotas, todas elas gente da minha criação, desde os tempos de Escola da Senhora Mista e da catequese da tia Albina e do padre Neto, e pedi-lhes que ali me cantassem novamente os versos para que eu os pudesse escrever. Tal, porém, não foi preciso, pois a Arminda Santita trazia-os numa saca, há tempos passados ao papel, pelo padre. De imediato mos emprestou, tendo eu corrido à Junta, onde logo foram fotocopiados. Numa outra folha vinha a Salvé Rainha e a Glória e o Avé Maria e o Padre Nosso, que igualmente faziam parte da novena. E deixo o meu testemunho. Valerá a pena ouvi-la, independentemente das crenças e dos credos de cada um, perante a conjugação da letra, da melodia e dos artifícios que, ao tempo, foram necessários introduzir para a tornar possível. É evidente que será necessário, nesse trabalho, dizer às pessoas como era cantada, como eram pronunciadas as palavras, como eram feitas as elisões e os tempos e as paragens, esperando eu que, um dia, se venha a concretizar a sua reconstituição tal qual sempre se rezou aqui pela Gândara. No dia seguinte, em Coimbra, fui assistir a um concerto de Natal, pelo Coro Carlos Seixas, na Igreja de S. Bartolomeu, no decurso do qual foi interpretada uma das peças que, na véspera, eu tinha ouvido cantar na capela da Senhora da Agonia e, em garoto, na igreja da minha terra, peça essa orquestrada por Fernando Lopes Graça, compositor do século XX, com a seguinte letra: Do Varão nasceu a vara/ Da vara nasceu a flor/ Da flor nasceu Maria/ De Maria o Redentor. É evidente que essa orquestração nada tinha a ver com a que, por estas terras, sempre se ouviu. Daí eu ter procurado o maestro e tê-lo questionado como teria chegado Lopes Graça àquele reportório tão antigo. E ele respondeu-me que o compositor a havia recolhido para o Cancioneiro Português, passando a fazer parte dos Cantos Tradicionais Portugueses, tendo depois procedido à presente orquestração e incluído na sua 1ª cantata de Natal em 1950. Segui o tema e fui encontrá-lo a ser interpretado pelo Coro da Faculdade de Letras do Porto, pelo Coral ansianense e pelo Grupo de Cavaquinhos de Famalicão. Mais interessante ainda foi a informação que obtive referindo que o dito tema remonta ao século XVI, e foi exportado para o Brasil, após a sua descoberta pelos portugueses, tendo passado a ser interpretada ali pela comunidade portuguesa.
António Castelo Branco