MEMÓRIA DA RUA DAS PADEIRAS
A estória da panela de pressão
É grande o afecto que me liga à Baixa de Coimbra e muito concretamente à rua das Padeiras, aonde vivi enquanto estudante, nos finais dos anos sessenta, na então Pensão Poiarense. Para além dos comensais e de quem ocasionalmente lá pernoitava, eram muitos os que, após verem a ementa, decidiam ali comer, algo de que nunca se terão arrependido pois a comida era óptima, abundante e a preços módicos.
A mesa à volta da qual todos se sentavam, única mas comprida, era coberta com uma toalha rústica de plástico e ladeada de bancos corridos, onde sempre cabia mais um!
Sopa feita, sopa nas terrinas, de onde todos se serviam à vontade, outro tanto acontecendo com o vinho das picheiras. Também as caldeiradas, dobrada, sarrabulho, feijoadas, arroz pardo, rancho, massadas, jardineira e outras variedades do mesmo tipo, eram colocadas em bastas travessas, possibilitando a mesma franqueza.
A certa altura, começou a falar-se, por ali, de panelas de pressão, inventadas recentemente, que tinham como característica serem muito económicas, pois cozinhavam tudo com rapidez. Ora o tio Arlindo, assim tratávamos afavelmente o nosso senhorio, tanta vez ouviu referências ao milagroso equipamento que foi à Casa Almeida, loja de ferragens das suas relações, informar-se o que era isso, já não regressando sem ter adquirido uma, grande é certo, mas que levava o muito e o pouco.
Apesar das parcas instruções, tal não impediu que a cozinheira, no dia seguinte, que era sábado e de pouco movimento, experimentasse o aparelho. Assim, partiu duas galinhas lá para dentro, acrescentou os temperos, fechou a panela e pô-la ao lume.
Quando o pipo começou a rodar e o vapor a sair, a mulher arredou-se, desconfiada, sem saber como poderia tirar a tampa e verificar se a carne estaria cozida. Ao invés, o tio Arlindo meteu a panela num seirão e foi direito ao estabelecimento que lha vendera, onde o empregado, que não via agora vapor, conseguiu desencaixar a tampa. Acto contínuo, tudo quanto estava lá dentro saltou cá para fora, atingindo quem se encontrava na loja e os múltiplos objectos expostos, nomeadamente canas de pesca, fatos de pescador e de caçador, chapéus… Incrédulo, o nosso amigo colocou novamente a panela na seira e regressou à pensão, mandando duas funcionárias para limpar tudo.
Claro que o episódio teve eco nas imediações, pois o Carnaval estava à porta! E os telefonemas sucederam-se: - Está lá, é da Poiarense? – É sim, faz favor de dizer. – Fala do Pinto dos Farrapos! O senhor não quer comprar numa panela de pressão?
A princípio mais comedido, a insistência acabava por dar azo a uma linguagem que nos arrebatava de riso.
Certo dia, ligou uma menina cheia de boas maneiras, que entabulou conversa e, a dado momento, lhe perguntou: - Ó senhor Arlindo, o senhor não quererá comprar uma panela de pressão? Foi o fim, aquilo que ela ouviu!
Passados alguns momentos, entrava na sala de refeições a Leonor, uma colega da filha deste nosso homem, que ele conhecia tão bem como nós. Entrou jovial e divertida e logo se lhe agarrou ao pescoço dizendo: - Ó senhor Arlindo perdoe-me a brincadeira, não foi por mal.
Envergonhado, aquele penitenciava-se agora, pedindo repetidamente desculpa à jovem. - Se eu soubesse que era a menina, nunca tinha dito o que disse.
E já punha mais um prato na mesa, convidando-a a almoçar connosco.
António Castelo Branco