Os dois “Luíses”

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Uns dias antes do Natal, trouxe a estas páginas aquele Luís que há anos canta e toca órgão frente a Santa Cruz e que tem uma estória que também já aqui contei e merece a nossa reflexão. A questão última a que me referi tinha a ver com a necessidade de ser encontrada uma casa para o alojar, perante uma ordem de despejo. Nesse contexto, eu interrogava-me como iria ser o seu Natal. As festas correram e ele contou-me, satisfeito, que lhe haviam apontado uma solução que iria aproveitar, logo que a companheira se sentisse melhor. Ausente por alguns dias, e agora de regresso, fui ao seu encontro. Antes de chegar a Sansão ouvi uma voz a entoar a Samaritana, com acompanhamento de viola. Eram dois “Luíses” que ali estavam, ambos sentados à beira do lago. O do órgão, agarrado agora ao microfone, e o outro, a dedilhar a viola, a dar-lhe as entradas e a avivar-lhe as letras Este músico é o Luís Travassos, de S. Martinho de Árvore, ali ao pé de Tentúgal, de há muito conhecido nesta cidade e em muitas outras, onde, como artista, sempre deixa o seu contributo pessoal enquanto músico de rua. Este Luís apercebeu-se que o outro, que se encostara a ele, estava com problemas e propôs-se ajudá-lo. E as coisas passaram a ser assim: aquele cantava, pois letras de canções era o que ele mais sabia, e este acompanhava-o. Isso viria a dar resultado, depois de umas ligeiras experimentações e de uns acordes adaptados, no caso de algumas falhas de voz e esquecimento de letras por parte do vocalista. O auditório tem sido grande e cresce cada vez mais com as pessoas que por ali vão passando a título de passeio, para visitar a Igreja de Santa Cruz ou tão só a quedarem-se na esplanada do histórico café em frente. Porque a sonoridade é grande e mesmo apelativa, toda a gente pára, olha, ouve e repara neste duo, sendo mesmo frequentes os pedidos e sugestões de um certo fado de Coimbra e até de Lisboa, e de determinado reportório que ficara no ouvido. E quantas vezes as palmas surgem intervaladas com as muitas fotografias que tiram aos artistas e, vá lá, com algumas moedas que vão tilintando no boné frente a eles. Quem canta seu mal espanta, diz a nossa gente, e eu quis saber a razão por que ali cantava o Luís do órgão, com uma expressão triste que não lhe era comum. Ao questioná-lo, disse-me que a sua companheira tinha sido operada naquela manhã no IPO, que nada sabia dela, e que era agora um amigo quem o guiava, devido à cegueira, para ele se poder movimentar. Dos espectadores em redor surgiu entretanto o pedido de uma certa canção a que o nosso “cantor” não se escusou, contando evidentemente com o respectivo acompanhamento da viola. A letra foi por aí fora até que chegou ao verso “quando te vi ”. Num aparte e como se se tratasse de um descargo de consciência, o Luís comentou só para si, em surdina: - mas eu não vejo! E a cantiga continuou e outras se seguiram, acompanhadas graças à solidariedade do homem da viola, que bem merece o nosso louvor.

António Castelo Branco