«A CHICA NERVOSA»
Nada tinha de efeminado ou menos macho, o velho Francisco Jorge de Carvalho, conhecido de milhares de pessoas por aquele apelido, resultante apenas dum personagem histriónico que o tornou célebre no seu tempo e ainda hoje recordado por nós com intensa e risonha saudade. É impossível recordar o Chico sem que nos acuda um sorriso aos lábios. Ele foi, na nossa época, talvez o mais divertido e engraçado dos companheiros. Coimbrão nato, da Alta, sotaque levemente anasalado e ligeiramente cantante, o Chico foi um daqueles raros estudantes cuja fama transbordou de Coimbra e se derramou por todo o país. Na Tuna, no Orfeon, no Teatro, ele foi sempre considerado elemento indispensável. Nas salas de espectáculo onde se exibia, conquistava sempre um êxito retumbante, despertando incontíveis coros de contínuas gargalhadas. Tinha uma natureza histriónica natural e congénita, uma imaginação vivíssima que o levava a improvisar indefinidamente, uma presença e uma voz empolgante, pelo ineditismo e pela comicidade incontida. Fazia rir com a facilidade com que respirava, consecutivamente e durante o tempo que quisesse. Nada de exagero há no que digo, e que me sirvam de testemunho tantos quantos o conheceram. Afirmo solenemente e sem que para isso me mova, de qualquer modo, a íntima amizade que sempre nos uniu, que o Chico, se não fora hoje o médico distinto que é, se pelo capricho ou por simples impulso se tivesse decidido pela carreira teatral, seria agora, sem dúvida, o maior artista cómico do país. Além disso, viveu o seu tempo de estudante com vigor e com aquela descontracção alegre e epicurista dos que saboreiam com prazer cada dia como se ele fosse o último. E sempre, em tudo que dele partia, em palavras, gestos, ou acções, se notava uma graça, um grau de comicidade irresistíveis. Para ilustrar o que dele vou dizendo, posso contar o que em certa altura aconteceu na Figueira da Foz, uma vez que a Tuna aí se deslocara a realizar um espectáculo. A determinado momento, quando a orquestra «esgaçava», com força e determinação, um dos seus números calistos (A «Marcha Turca» de Mozart), tentando levar a termo, penosa e lamurienta, a parte «artística» do espectáculo, as luzes falharam e tudo ficou às escuras. No entanto, os executantes, com o brio e com a força anímica que o hábito lhes conferia, continuaram a triturar a peça sem interrupção. O maestro, o saudoso Dr. Raposo Marques, verificando a inutilidade da sua presença como regente, aproveitou a trégua para se retirar para os bastidores, a fumar um cigarro.
Aí já se encontrava o Chico, prestes a iniciar a sua peça «Inês de Castro», fardado já de polícia (!), já ostentando os bigodes façanhudos. Então, protegido pela penumbra, acercou-se do maestro, e em voz autoritária, advertiu: — «Faça o favor de apagar o cigarro que aqui é proibido fumar». O Dr. Raposo Marques obedeceu, não sem abafar uma observação das suas. E seguiu para um corredor próximo, onde de novo acendeu outro cigarro. Mas aí também foi de novo interpelado pelo mesmo «polícia», em voz grossa e já zangada: — «O senhor então não me ouviu? Se quiser fumar tem que ir lá para fora». E, enquanto o maestro, já furioso, esmagava com o pé o segundo cigarro, resmungando entre dentes deliciosos insultos do seu fértil reportório açoreano, apareceu finalmente um colega que, reconhecendo o Chico, libertou a gargalhada que tudo esclareceu. As obscenidades e os palavrões saltaram então livremente da boca do regente, até que, aliviado, e já satisfeito, acabou por juntar as suas às gargalhadas dos outros dois.
António Nicolau Costa
Em Boémia Coimbrã